terça-feira, 31 de dezembro de 2013

          

Previsão de Futuro: Os Domínios da Mente (Livro da Profecia. O Brasil no terceiro milênio)

 
1. A psiquiatria é uma especialidade médica que faz fronteira com a neurologia, por um lado, e com a filosofia, por outro. Estivemos muito ocupados com seu conteúdo intrínseco, qual seja, o dos conflitos derivados de eventuais experiências traumáticas individuais, uma vez que a psicanálise foi o grande evento do século XX. Além de nos alertar paraos dilemas pessoais, trouxe para o domínio da ciência algumas das grandes questões humanas, tais como o significado dos sonhos e a existência do inconsciente, os inexoráveis conflitos entre pais e filhos, a sexualidade e os problemas derivados da necessidade de repressão deste impulso para a viabilização da vida em sociedade, etc.
Creio que estamos chegando perto do fim deste tipo de reflexão sobre nossa condição. Penso que os grandes conflitos existenciais, sempre tratados pela filosofia, tomarão vulto enorme, uma vez que nossos conflitos são ínfimos diante de temas como o do medo da morte, a insignificância cósmica da condição humana, o desamparo físico e metafísico que nos envolve, etc. A reflexão filosófica passará a ser o centro, enquanto que os eventuais conflitos individuais serão a periferia daquilo que será analisado em nossa subjetividade. Exatamente o oposto do que fazemos hoje.
Por outro lado, os avanços da neurofisiologia e da farmacologia daí derivada nos trarão importantes reforços terapêuticos de natureza essencialmente orgânica. Não só os quadros depressivos e ansiosos poderão ser combatidos com eficiência crescente, mas também distúrbios de natureza alucinatória, delirante, e mesmo aqueles relacionados com a idade — entre os quais ressalta o prejuízo da memória. Cirurgias cerebrais para tratamento de sintomas específicos, relacionados não só com a epilepsia, serão realizadas com freqüência crescente. Ou seja, boa parte daquilo que hoje constitui a psiquiatria se bandeará na direção da neurologia.
Não é o caso, porém, de superdimensionarmos estes dados de previsão. O grande mistério de como as células cerebrais são capazes de gerar isto que chamamos de pensamento ainda continuará sem desvendamento. A hipótese de que algo de imaterial — a alma — tenha nos penetrado e se exerça através do sistema nervoso continuará a ser aventada, pois é mais ou menos assim que nos percebemos: portadores de uma lado material e outro, o da mente pensante, que parece totalmente separado do corpo.
2. Este setor aparentemente não material da nossa atividade cerebral, aquele que se compõe de percepções externas e internas que alimentam o pensamento, o raciocínio e a lógica, continuará a ser muito importante. Duas modificações são previsíveis: a primeira será no sentido de aprimoramento do rigor lógico, hoje muito descuidado. Isto é grave, pois tem gerado equívocos inadmissíveis causadores de grandes sofrimentos. Quando pensamos mal concluímos de modo errado e somos incapazes de levar adiante nossos projetos de vida. A eles se transferem nossos equívocos racionais.
A outra modificação consistirá na crescente importância que assumirão os chamados fenômenos paranormais. Telepatia, premonição, materialização estão entre os processos psíquicos que indiscutivelmente existem, mas que não temos a menor idéia dos ingredientes nele contidos. Não creio que saberemos muito sobre eles nas próximas décadas. Porém, conseguiremos nos livrar dessa forma simplista de pensar, que é a de que só existem as coisas cuja explicação fomos capazes de nos apropriar. Assim sendo, conviveremos com estes fenômenos, que serão parte integrante de nossa vida cotidiana. Poderemos nos treinar para a comunicação telepática com aquelas pessoas que nos interessem, poderemos mudar objetos de lugar através da força do pensamento, poderemos levar mais a sério nossas previsões acerca do futuro. Tudo isto gerará novos e imprevisíveis avanços e trará também novas dores, novas disputas e talvez um novo tipo de poder; isto porque os “dons” paranormais não serão iguais entre os humanos.
3. Nossa mente será povoada com lembranças de situações que efetivamente vivenciamos, com pensamentos lógicos que fomos capazes de construir e também com dados que nos chegaram pela via telepática. Chegarão vindos de outras mentes. Poderão ser mentes iguais às nossas. Mas poderão ser de seres que habitam outros planetas em outros sistemas estelares. É muito provável que existam seres extra terrenos e que venhamos a nos comunicar com eles em breve; e talvez isto se dê exatamente pela via telepática.
Da mesma forma, não é impossível que sejamos capazes de nos comunicar com eventuais espíritos que porventura nos rodeiam. Não será fácil distinguir entre o que seja imaginação, telepatia com terrenos, telepatia com extra terrenos e telepatia com eventuais espíritos. É bem provável que o pensamento religioso sofra enormes modificações, de modo que serão pouco convincentes os textos místicos tradicionais. Deverão surgir novas doutrinas, que atrairão as grandes multidões. Elas estarão cada vez mais disponíveis para isso, uma vez que os novos processos psíquicos de natureza paranormal nos darão a impressão de estarmos, de novo, cercados por brutais mistérios e rodeados de magia e de espiritualidade.
4. O reacender desta visão mágica e mística da vida trará consigo várias conseqüências. Uma delas será o fim da idéia de que o pensamento lógico é o único meio de chegarmos ao conhecimento — e este tipo de pensar, quando exercido será, como disse, mais rigoroso. Estará sendo reforçado o pensamento do tipo indutivo, mais rico e criativo do que a dedução. As artes florescerão depois de um longo período de aridez que já está em curso.
Em decorrência deste tipo de visão mais religiosa da vida — e também em conseqüência dos processos ligados aos limites energéticos e ecológicos do planeta — nossa tendência materialista atual sofrerá radical reversão. As pessoas se aperceberão, de modo definitivo, que os bens materiais para além dos indispensáveis não são capazes de trazer os benefícios sugeridos. A corrida consumista acabará. Ser muito apegado aos bens materiais voltará a ser visto como coisa fútil e menor. É provável que uma visão mais clara das questões metafísicas e religiosas trará aos nossos espíritos um certo tipo de alívio e serenidade que desconhecemos.
Desta forma, o trabalho também mudará de conotação. Deixará de ser visto como a maior virtude, como o que de melhor temos para fazer com nossa inteligência, agora entretida com telepatia e também com equipamentos eletrônicos cada vez mais sofisticados e interessantes. A automação diminuirá cada vez mais as oportunidades de trabalho no mundo concreto que nos cerca. É curioso prever que isto coincidirá com as alterações em nossa subjetividade que também trarão um menor apego do homem às coisas materiais e ao trabalho que é o veículo para sua aquisição.
5. Muitos dos bens produzidos em decorrência dos recentes avanços tecnológicos são relacionados com o lazer. E mais do que isto, tem a ver com entretenimentos individuais, solitários. As crianças hoje já se ocupam mais com a televisão e com os computadores do que com as outras crianças — e mesmo com os pais. Este dado objetivo da nossa nova realidade é fundamental, pois finalmente nos permite uma visão individual do ser humano. Sempre nos vimos como uma parte de um todo maior. No amor romântico, éramos a “metade” da laranja. Sempre nos sentimos incompletos e isto nos impediu de nos reconhecermos como inteiros, como unidade. Aprendemos a conceber a salvação com algo que viria de fora, do outro; isto é, que o indivíduo não se resolve em si mesmo.
Num primeiro instante este individualismo crescente apareceu como algo nefasto, como um subproduto negativo, como um alto preço que estávamos pagando pelo nosso progresso tecnológico. Com o passar das décadas, poderemos perceber que estávamos muito enganados. Perceberemos que o individualismo é, em primeiro lugar, nossa verdade maior. Isto nos levará a uma revisão definitiva do fenômeno amoroso tal como o conhecemos. A idéia de fusão de duas criaturas para formar a unidade romântica será facilmente relacionada com um anseio regressivo relacionado com nossa origem — fusão da mãe e seu feto. O amor adulto será respeitoso dos direitos e do modo de ser dos indivíduos. Será próximo do que hoje chamamos de amizade e será muito mais gratificante do que imaginamos.
Perceberemos que o sexo é um fenômenos essencialmente individual e que as práticas que envolvem trocas de carícias não têm a importância que a ele atribuímos. Tornar-se-á um fato simples e será praticado entre criaturas de sexo oposto ou do mesmo sexo de acordo com os desejos de cada um. Será visto como algo totalmente isolado do amor, podendo — ou não — a ele se acoplar. A igualdade no modo de ser e de se comportar de homens e mulheres será inevitável, ressalvadas apenas as diferenças que são da biologia. Viveremos a igualdade possível para criaturas desiguais.
A vaidade, ingrediente importante da nossa sexualidade que nos leva a desejar muito o destaque e o exibicionismo de todo o tipo, será melhor entendida, de modo que ficará essencialmente relacionada com nossas funções corpóreas. A vaidade intelectual, que tanto mal tem feito ao nosso modo de pensar, será desprezada e rejeitada como o pior dos males. O controle sobre essa vaidade nociva será outro ingrediente que, junto com a diminuição do materialismo, que tenderá para conduzir as pessoas numa direção de menos disputa e mais companheirismo. Os prazeres intelectuais crescerão juntamente com a espiritualidade e o ressurgimento das artes. Será, porém, livre deste danoso ingrediente da vaidade.
6. Talvez a mudança mais inesperada e radical que as décadas vindouras irão assistir seja aquela relacionada com o pensamento — e com a prática — moral. Vivemos sob o domínio de um modo de pensar que atribui à generosidade o papel de virtude, sendo o egoísmo o vício. Sabemos que a humanidade se divide essencialmente entre estes dois tipos, onde predomina uma ou outra destas posturas. A proporção das pessoas desta ou daquela forma é mais ou menos a mesma, distribuída igualmente entre os sexos. Egoístas se alimentam das dádivas dos generosos. Estes se sentem melhores e superiores por causa disso. Os primeiros se sentem espertos e um tanto humilhados com seu procedimento, que é típico das crianças ainda fracas e dependentes. Na realidade, compõe-se uma espécie de recíproca dependência, uma vez que os que se dispõem a dar mais do que recebem necessitam deste tipo de auto-afirmação. Alianças deste tipo se estabelecem no amor e também nas relações profissionais.
Voltaremos a pensar, como Aristóteles o fez há 24 séculos, que a virtude está na temperança, no meio. Qualquer desvio, tanto na direção do excesso como de escassez daquela propriedade, será entendido como vício igual. Generosidade e egoísmo são, pois, vícios complementares. A virtude será o ponto de justiça. Só os justos serão vistos como portadores de um modo de ser equilibrado, onde não predomina nem a vaidade intelectual e nem as fraquezas operacionais. O desaparecimento dos generosos trará como conseqüência inevitável o fim dos egoístas; estes não terão a quem parasitar e tratarão de evoluir. Finalmente desaparecerá este duplo modo de se comportar e de pensar que hoje tanto nos confunde e nos impede de educar nossos filhos. Com qual modelo irão eles se identificar quando o pai é de um modo e a mãe do outro?
Pessoas justas construirão famílias onde a justiça irá prevalecer, onde os privilégios indevidos não existirão. Pessoas justas construirão ambientes de trabalho onde não irão mais acontecer de uns fazerem a maior parte do esforço e outros levarem os louros e as glórias. Pessoas justas não se deixam explorar. Exigem direitos iguais aos que atribuem aos outros. Não querem mais e nem menos do que aquilo que merecem. Pessoas justas construirão sociedades mais justas, nas quais as diferenças de talento definirão privilégios para uns mas não às custas da miséria dos menos dotados.
Até aí o discurso parece o de um homem de bem sonhando com um mundo melhor, que poderá ou não ocorrer. O que me faz fascinado é que acredito que isto irá acontecer mesmo que não seja este o desejo daqueles que nos governam; e mais, irá acontecer independente da vontade dos nossos intelectuais e pensadores. Acontecerá em virtude das alterações nos processos econômicos mundiais e será simultâneo, pois se dará ao mesmo tempo de todos os cantos do planeta. Acontecerá não por vontade dos humanistas e sim por causa dos desígnios das novas leis da economia.
A “globalização” que estamos assistindo é processo irreversível. A competição entre empresas, países, modos de produção tenderá para crescer cada vez mais. O que acontecerá dentro das empresas? Elas terão que desenvolver um sistema de convívio interno extremamente competente e cooperativo para que possam se tornar competitivas em relação à concorrência. Ora, o desenvolvimento deste ambiente cooperativo só será possível se os participantes daquele grupo de trabalho forem justos. Se forem, como hoje, egoístas e generosos, viverão às turras, uns explorando e se sentindo pouco competentes para o trabalho efetivo enquanto que outros se sentirão competentes e mal reconhecidos pelos seus feitos. A recíproca rivalidade e inveja é responsável por tensões e competições internas que farão pouco competitivas as empresas assim constituídas e que necessitam de toda a energia para a disputa externa.
As empresas terão que ser como times de futebol — ou de qualquer outro esporte — onde o interesse coletivo terá que prevalecer sobre os óbvios e fortes interesses individuais. As pessoas finalmente compreenderão que o seu sucesso depende mais do que tudo do sucesso do grupo. Com isto surgirá, por necessidade e não por ideologia ou convicção, a prazerosa sensação de solidariedade e cooperação. Serão sentimentos que tenderão a se estabelecer porque são muito agradáveis. As empresas demitirão aqueles que não se integrarem neste sistema cooperativo capaz de promover a máxima produtividade e fazer delas vitoriosas nas crescentes competições do mercado internacional. Os egoístas terão que se reformar sob pena de ficarem sem trabalho. Os generosos não poderão mais exercer suas peculiaridades porque não existirão pessoas diferentes deles no ambiente de trabalho.
Aos poucos, e sem que nos apercebamos, todos teremos nos tornado pessoas justas. E isto acontecerá pelo caminho mais inesperado, qual seja, o do estabelecimento de um modo de vida de tal forma competitivo — derivado das novas regras da economia mundial — que não poderemos mais sustentar a antiga divisão entre generosos e egoístas
Gikovate

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

feira, dezembro 30, 2013

Feliz 2014! - PAULO GUEDES

O GLOBO - 30/12
A espécie humana insiste na extraordinária ousadia de rejeitar suas despretensiosas origens. O homem criou narrativas de fuga de sua modesta natureza. Demos fôlego a nossas precárias existências elaborando as primeiras crenças e religiões. Era preciso dar sentido a vidas biologicamente acidentais, fragilíssimas e sobretudo curtas. O encantamento do mundo foi uma exigência de mentes primitivas assombradas pela grandiosidade de um incompreensível universo. Filósofos e teólogos deram significado a vidas efêmeras construindo pontes para mundos transcendentes, habitados por almas eternas. Sopros de esperança e magia alimentando nossa vontade de viver.
"O homem, um curioso acidente ocorrido num canto do universo, é inteligível: sua mistura de virtudes e vícios é aquela que se pode esperar do resultado de uma origem fortuita.

Se me fosse concedida a onipotência e milhões de anos para experimentá-la, não me gabaria de ser o homem o resultado de todos os meus esforços", observa o resoluto ateísta Bertrand Russell. "É curiosa a ideia de que uma proposta cósmica superior esteja especialmente voltada ao nosso pequeno planeta, pois seremos destruídos quando o Sol explodir e se tornar uma estrela anã fria e branca daqui a 1 bilhão de anos", prossegue Russell em suas dúvidas quanto às boas intenções do universo em relação aos humanos. O matemático e filósofo inglês tinha especial afeição por Baruch Spinoza, o farol holandês do iluminismo radical, cuja negação dos milagres e do sobrenatural, anúncio da morte do diabo e denúncia da credulidade das massas deram início ao desencantamento do mundo.

Compreender é um milagre ainda maior que existir. A consciência da transitoriedade de nossas vidas e de sua improvável transcendência torna imperativo realizar nossas possibilidades com ainda maior intensidade. Criamos significados para nossas vidas aperfeiçoando nossos talentos e cooperando com os demais em busca de sonhos comuns. Para Rousseau, a diferença entre o homem e o animal está na faculdade de aperfeiçoamento, de fuga de seus instintos naturais. "A vontade ainda fala quando já se calou a natureza." Que possamos dar mais significados a nossas vidas, aperfeiçoando-nos a cada dia de 2014.

Afinal, temos ainda 1 bilhão de anos pela frente

Nacisismo no Face

Cuidado! Quem tem muitos amigos no Face pode ter uma personalidade narcísica. Personalidade narcísica não é alguém que se ama muito, é alguém muito carente. Faço parte do que o jornal britânico The Guardian chama de social media sceptics (céticos em relação às mídias sociais) em um artigo dedicado a pesquisas sobre o lado “sombrio” do Facebook (22/3/2012). Ser um social media sceptic significa não crer nas maravilhas das mídias sociais. Elas não mudam o mundo. Aliás, nem acredito na “história”, sou daqueles que suspeitam que a humanidade anda em círculos, somando avanços técnicos que respondem aos pavores míticos atávicos: morte, sofrimento, solidão, insegurança, fome, sexo. Fazemos o que podemos diante da opacidade do mundo e do tempo.

As mídias sociais potencializam o que no humano é repetitivo, banal e angustiante: nossa solidão e falta de afeto. Boas qualidades são raras e normalmente são tão tímidas quanto a exposição pública. E, como dizia o poeta russo Joseph Brodsky (1940-96), falsos sentimentos são comuns nos seres humanos, e quando se tem um número grande deles juntos, a possibilidade de falsos sentimentos aflorarem cresce exponencialmente.

Em 1979, o historiador americano Christopher Lasch (1932-94) publicava seu best-seller acadêmico A Cultura do Narcisismo, um livro essencial para pensarmos o comportamento no final de século 20. Ali, o autor identificava o traço narcísico de nossa era: carência, adolescência tardia, incapacidade de assumir a paternidade ou maternidade, pavor do envelhecimento, enfim, uma alma ridiculamente infantil num corpo de adulto.

Plugados e solitários

Não estou aqui a menosprezar os medos humanos. Pelo contrário, o medo é meu irmão gêmeo. Estou a dizer que a cultura do narcisismo se fez hegemônica gerando personalidades que buscam o tempo todo ser amadas, reconhecidas, e que, portanto, são incapazes de ver o “outro”, apenas exigindo do mundo um amor incondicional. Segundo a pesquisa da Universidade de Western Illinois (EUA), discutida pelo periódico britânico, “um senso de merecimento de respeito, desejo de manipulação e de tirar vantagens dos outros” marca esses bebês grandes do mundo contemporâneo, que assumem que seus vômitos são significativos o bastante para serem postados no Face.

A pesquisa envolveu 294 estudantes da universidade em questão, entre 18 e 65 anos, e seus hábitos no Face. Além do senso de merecimento e desejo de manipulação mencionados acima, são traços “tóxicos” (como diz o artigo) da personalidade narcísica com muitos amigos no "Face" a obsessão com a autoimagem, amizades superficiais, respostas especialmente agressivas a supostas críticas feitas a ela, vidas guiadas por concepções altamente subjetivas de mundo, vaidade doentia, senso de superioridade moral e tendências exibicionistas grandiosas. Pessoas com tais traços são mais dadas a buscar reconhecimento social do que a reconhecer os outros.

Segundo o periódico britânico, a assistente social Carol Craig, chefe do Centro para Confiança e Bem-estar (meu Deus, que nome horroroso...), disse que os jovens britânicos estão cada vez mais narcisistas e reconhece que há uma tendência da educação infantil hoje em dia, importada dos EUA para o Reino Unido (no Brasil, estamos na mesma...), a educar as crianças cada vez mais para a autoestima. Cada vez mais plugados e cada vez mais solitários. Na sociedade contemporânea, a solidão é como uma epidemia fora de controle.

Humanidade atormentada

O Facebook é a plataforma ideal para autopromoção delirante e inflação do ego via aceitação de um número gigantesco de “amigos” irreais. O dr. Viv Vignoles, catedrático da Universidade de Sussex, no Reino Unido, afirma que, nos EUA, o narcisismo já era marca da juventude desde os anos 80, muito antes do Face. Portanto, a “culpa” não é dele. Ele é apenas uma ferramenta do narcisismo generalizado. Suspeito muito mais dos educadores que resolveram que a autoestima é a principal “matéria” da escola.
A educação não deve ser feita para aumentar nossa autoestima, mas para nos ajudar a enfrentar nossa atormentada humanida:

Hábitos, Compulsões e Vícios

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Falta muito para que possamos dizer que conhecemos os detalhes do funcionamento do psiquismo humano. O que é fato é que uma boa parte das nossas ações parecem governadas por um “piloto automático”: em muitos casos, agimos de forma automática; e reagimos a determinadas situações sem que necessitemos pensar acerca do que fazer.
Os movimentos que fazemos ao dirigir o carro são todos sincronizados e não exigem reflexão, assim como as reações que temos diante de um problema inesperado no meio do percurso que estamos realizando. Muitas vezes só nos conscientizamos de algo depois do ocorrido, como se, diante do susto, o piloto automático tivesse se desligado! Fazemos o mesmo ao escovar os dentes, ao nos movimentarmos durante o banho, nos enxugarmos, assim como em tantas outras condições que se repetem com regularidade em nossas vidas.
Chamamos de hábitos aos comportamentos, não inatos, que se tornam repetitivos e fixos. Ao que tudo indica, eles se consolidam na nossa memória, criando um caminho sólido no sistema nervoso, de modo que, em cada dada situação, respondemos do modo que foi padronizado.
Uma vez criado um hábito, que é um tipo de reflexo condicionado que se estabelece em função das repetições, fica muito difícil desfazê-lo. Temos facilidade para associar (condicionar) e enorme dificuldade para dissociar, desfazer essas conexões cerebrais que se fixam com vigor.
Se um dia nos habituamos a comer depressa, temos enorme dificuldade de reaprender e passar a comer mais devagar, mastigando bem os alimentos. Se um dia nos habituamos a cruzar as pernas ao sentar, o movimento nos chega automaticamente mesmo quando já sabemos da necessidade de nos livrarmos dele por força de algum problema de postura. Precisamos de atenção redobrada, de enorme empenho constante e prolongado, para conseguirmos nos livrar de nossos condicionamentos.
As compulsões correspondem a hábitos específicos que se perpetuam apesar de terem um caráter frequentemente inconveniente ou mesmo nocivo. São exemplos de compulsões o ato de roer as unhas, os variados tipos de automutilação, como por exemplo se ferir com as próprias unhas, assim como os transtornos obsessivo-compulsivos (TOC).
O que os caracteriza, a meu ver, é uma propriedade muitas vezes difícil de ser detectada, qual seja, a de que provocam uma redução de ansiedade: se alguém está muito nervoso e desenvolveu a compulsão de roer as unhas, será nessa hora que o fará, posto que isso provocará uma melhora do estado emocional. Em uma frase: as compulsões provocam um tipo especial de prazer, chamado por Schopenhauer de “prazer negativo”, que se caracteriza pela existência de um desconforto inicial que se atenua através da realização do ato compulsivo; ele provoca um tipo de prazer parecido com o que nós sentimos quando, com frio, nos agasalhamos, com sede, bebemos água…
Os rituais repetitivos do portador de TOC aliviam uma ansiedade que só se esvai por esse meio. A compulsão por arrancar os cabelos (tricotilomania) só se perpetua por ter se transformado em “remédio” para a ansiedade que acompanha aquela pessoa em determinadas situações.
As compulsões alimentares ligadas à ingestão exagerada de comida (ou de certos doces) seguem o mesmo trajeto: apazigua a sensação de desamparo que nos maltrata em determinados momentos do dia ou da semana. Aquelas ligadas à recusa em se alimentar (anorexia) parecem relacionadas inicialmente ao prazer de se ver magra, que depois se transforma em algo mais complicado, onde o ato de comer aparece como a quebra de um ritual que alivia certas tensões, além de fazer bem à vaidade. As compulsões alimentares são mais complexas porque, além do alívio da sensação dolorosa de desamparo, traz consigo também um “prazer positivo”, sensação agradável que não depende da presença de um desconforto prévio.
O doce ou o chocolate são experiências agradáveis mesmo na ausência de qualquer desconforto! Esse tipo de compulsão já tem um pé naquilo que se chama de vício.  O vício costuma estar ligado a um fortalecimento ainda maior das conexões neuronais típicas dos hábitos, pois, no cérebro, se estabelecem outros trajetos típicos da dependência química.
Desnecessário dizer das dificuldades das pessoas para se livrar deles, posto que, ao menos numa primeira fase, provocam enorme prazer, sendo que os efeitos nocivos só costumam aparecer depois de muito tempo. Nem todos os vícios implicam dependência química, porém todos têm a ver com a presença de um prazer positivo, um bem-estar inicial: consumismo desvairado, excesso de trabalho…É preciso cautela, pois não é difícil nos vermos enredados em algumas dessas situações. E, para sairmos, necessitamos, na maior parte das vezes, de uma força hercúlea!
 
 

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, 2013

Nada por mim - LULI RADFAHRER

FOLHA DE SP - 30/12

Usados com moderação, os apps de 'behaviorismo digital' podem ser uma bela ferramenta de autogestão


O crescimento das mídias sociais ajudou a reconfigurar as paranoias de comportamento e facilitar as resoluções de ano novo. Com a ajuda de aplicativos quase gratuitos e de um punhado de amigos nas redes é possível comer melhor, dormir mais e viver uma vida mais ecológica, saudável, produtiva e segura.

Seus usuários, fáceis demais, parecem incapazes de cuidar do corpo que possuem. Não vai demorar para que os programinhas que hoje registram calorias e horas de sono passem a computar fatores genéticos, pessoais e ambientais para recomendar a eles o que fazer, o que vestir, com quem andar e aonde ir.

Técnicas de mudança de comportamento partem do princípio de que é mais fácil realizar pequenas tarefas, administráveis, do que lutar contra a tentação munido apenas de força de vontade. Comuns em programas de combate a situações crônicas, como os Vigilantes do Peso e os Alcoólicos Anônimos, elas estão cada vez mais comuns no ambiente digital, em que usam neologismos marqueteiros como "quantified self" e "gamificação".

O primeiro a sugerir esse tipo de prática foi o controverso psicólogo americano B. F. Skinner, criador do behaviorismo radical. Ele acreditava que as pessoas poderiam ser programadas a tomar determinadas atitudes, desde que vissem bons resultados derivados delas --os chamados "reforços".

Skinner viu que muitos animais reagiam positivamente, repetindo-os até que se tornassem hábitos. E propôs que o ser humano reagiria da mesma forma, questionando a ideia do livre-arbítrio.

Depois de quase meio século de rejeição, as ideias de Skinner voltam a ativa nos aplicativos comportamentais. Eles estabelecem objetivos modestos para encorajar o progresso constante e reforços posteriores, medem rigorosamente os resultados para descobrir quais variáveis comprometem ou estimulam as conquistas, usam as mídias sociais para buscar apoio do grupo e criam novas tarefas para que o hábito se forme. Com o apoio dessas técnicas, o indivíduo quantificado e gamificado se transforma naquele indivíduo programável.

O problema das técnicas behavioristas é que a mudança de comportamento demanda o apego a determinadas rotinas, abrindo mão do livre-arbítrio. O usuário que se dedica a um desses programas reconhece não ser capaz de dar conta de si próprio, terceirizando o controle para o sistema.

É fácil ver aonde isso vai parar. Tecnologias de "big data", computação em nuvem e internet das coisas tendem a criar bolhas de isolamento cada vez maior, capazes de reconhecer mudanças de comportamento e se antecipar a novos desejos. Nas palavras do filósofo de tecnologia Albert Borgmann, "deixaremos de cuidar da casa para sermos cuidados por ela".

Por mais que seja eficiente para resolver problemas e hábitos que comprometem a saúde de seus usuários e dos que convivem com eles, a mecanização pode ser um perigoso instrumento de manipulação.

Usado com moderação, o behaviorismo digital pode ser uma bela ferramenta de autogestão. Em excesso, pode mecanizar seus usuários, comprometendo sua força de vontade. Na dúvida, o melhor é buscar independência para evitar que a máquina pense que você é dela.

Fim de Ano: Hora de Fazer um Balanço de Nossas Vidas




Dezembro costuma ser um mês diferente.
Algumas pessoas ficam particularmente felizes, mas um grupo maior fica triste e outro ainda se sente profundamente deprimido. É o período do ano em que há maior incidência desse estado terrível, no qual as pessoas veem tudo negro, perdem as forças físicas e também as esperanças.
Esse sentimento pode ter várias causas. A mais comum é a sensação de desamparo e abandono que muitos experimentam.
Pessoas com a vida sentimental mal resolvida sentem até alguma inveja daqueles que vivem em família, ainda têm os pais vivos, inúmeros irmãos e primos. É claro que a inveja nem sempre está justificada, pois a maior parte daqueles que têm o convívio familiar mais estreito padece de inúmeras situações de rivalidade, disputa e conflito.
A sensação ainda pode se inverter, por exemplo, no período que antecede o carnaval. Nessa fase, as pessoas menos comprometidas com vínculos sólidos irão se divertir mais. Em dezembro todo o mundo quer estar casado; em fevereiro, solteiro!
Uma outra causa de depressão, típica desta época, tem a ver com a tendência de a maior parte das pessoas aproveitar a passagem do ano para fazer um balanço de suas vidas. Não deixa de ser razoável e útil pararmos, de tempos em tempos, para realizar uma revisão de como temos nos colocado diante dos desafios da existência.
Processo similar costuma ocorrer nos dias que antecedem o aniversário, especialmente aqueles que encerram mais uma década de existência. Fazer 30, 40, 50 ou 60 anos nos impõe uma auto-avaliação, cujo resultado nem sempre nos aparece como muito agradável.
Em dezembro, costumamos vivenciar a tristeza própria de não termos atingido todos os objetivos, de estarmos aquém dos nossos sonhos e expectativas. Mas a maior parte das pessoas faz esse balanço de vida de uma forma pouco criteriosa.
Muitas se deprimem mais do que deveriam, porque erram na “contabilidade emocional”. Por exemplo: se uma pessoa obesa fez, no início do ano, um projeto de perder 20 quilos durante 2013 e chega em dezembro com 10 quilos a menos, poderá ficar triste. Acredito que ela não tenha razões para isso.
Nossos sonhos e planos são as nossas metas: costumamos elaborá-los no início de cada período e a eles nos dedicarmos com algum afinco. Porém, raramente conseguimos realizá-los plenamente, porque nossa capacidade para imaginar será sempre maior do que a de realizar.
É o sonho que nos impulsiona. O importante é que tenhamos conseguido algum avanço, que tenhamos a sensação de que nossa vida evoluiu. As coisas que não foram atingidas continuarão na nossa agenda para o ano que virá, junto com nossas outras expectativas.
Triste mesmo é quando as pessoas constatam que, ano após ano, estão no mesmo lugar. E vejam bem: estou me referindo muito menos aos projetos práticos e materiais do que aos avanços íntimos e espirituais.
Às vezes, penso que o grande sentido da vida é conseguirmos sair da Terra, 70 ou 80 anos depois de termos chegado, um pouco mais bem resolvidos interiormente. É termos sido competentes para dominar nossas disposições agressivas, aprendido a lidar melhor com frustrações e dores de todo tipo, desenvolvido a persistência, nos tornado mais corajosos para fazer com que nossos sonhos se realizem. Enfim, é termos sido capazes de ter olhado interiormente, a ponto de nos tornarmos mais independentes do julgamento das outras pessoas.
E, nesse setor da vida interior, os avanços são muito lentos e difíceis. Qualquer progresso mínimo já deve ser motivo de grande alegria e de sonoras comemorações.
Desejo a todos vocês que, em dezembro de 2014, estejam com o coração cheio de orgulho e de contentamento pelo que puderam fazer por si mesmos e pelos outros no ano que irá começar.
Não há dinheiro ou coisa material que se iguale, em termos de satisfação, a esse tipo de sensação interior.LinkedIn
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Duas ou três coisas sobre 2013 - LUIZ SÉRGIO HENRIQUES

O Estado de S.Paulo - 30/12

Nada difícil encontrar sinais contraditórios para onde quer que se olhe, no mundo e no Brasil, a confirmar que vivemos situação inédita em que não basta a navegação de cabotagem, quando acidentes geográficos familiares, ao alcance da vista, asseguram a tranquilidade do viajante. Agora, de cada um dos atores da cena pública o que se requer é a renovação ousada do repertório de conceitos e valores, de modo que, num cenário subitamente em movimento, encontros imprevistos entre tradições diferentes e até antagônicas podem descortinar modos novos de fazer política e cultura, à altura da situação que alguns definem como de "emergência antropológica", tamanhos os riscos (e as possibilidades) inerentes à atual estrutura do mundo.

Esta é toda uma época, como comumente se diz, de globalização neoliberal ou, se quisermos, de agressiva afirmação do "comunismo dos capitalistas", sob a égide dos caprichos voláteis e tempos velozes da grande finança. Uma época que pode ser lida sob a ótica da unificação contraditória do gênero humano, que deixa de ser categoria filosófico-especulativa para se tornar realidade imediatamente palpável para cada pessoa: já se observou, por exemplo, que até as doenças são globais, a exigir medidas que muitas vezes superam o poder de reação das autoridades de determinado país.

Nem tudo é perdição. Não vivemos, como diagnosticou certa esquerda de tons apocalípticos há um século diante do flagelo da guerra, a era da pecaminosidade absoluta. Indicadores confiáveis trazem a boa-nova segundo a qual, com tal processo de unificação do gênero, diminuiu consistentemente a pobreza em termos absolutos, embora as desigualdades sejam crescentes entre países e no interior dos diferentes países. Fenômeno agravado nestes últimos anos de impenitente crise, com seu cortejo dramático de desemprego estrutural, migrações massivas, tragédias econômicas que marcam o destino de milhões de pessoas.

Um bom diagnóstico, não pessimista, mas rigoroso em suas implicações, é o de que vivemos descompasso crescentemente insustentável entre a internacionalização das forças econômicas, que têm o mundo inteiro como seu teatro real, e a timidez da política - certamente, da política democrática, essa que mobiliza o interesse e a consciência de grandes massas -, cujo âmbito ainda são os Estados nacionais, relativamente impotentes para redefinir e regular correntes que superam amplamente sua capacidade de intervenção.

Esta, a realidade efetiva, para empregar expressão ao gosto de um clássico renascentista de 500 anos, completados no ano que ora finda. Inútil retornar, entre outras categorias, ao "finalismo" do comunismo do século 20, que imaginava a transição para um Estado ideal - o socialismo ou o comunismo, precisamente -, determinado pelo desenvolvimento das forças produtivas, que concretizaria, após o grande evento revolucionário, a hipótese do governo como mera administração das coisas. Uma realidade que comportaria, ainda, a supressão progressiva da mediação política, uma vez extirpadas as fontes básicas do conflito entre os homens. Para que, então, pensar o Estado, o Direito, a política - fantasmagorias destinadas a perecer paulatinamente, à medida que se aproximasse aquela imaginária e transparente realidade final da convivência humana?

Eis que descobrimos, ou redescobrimos, a ideia de que o movimento civilizatório é tudo, o fim é quase nada, ou, antes, será o que dele fizermos, em absoluta coerência com os meios de que lançarmos mão. Esquerda e direita ainda são palavras significativas na esfera pública, mas, além de palavras, devem se referir a coisas, situações, valores, classes, indivíduos. Apropriar-se, na medida do possível, dos mecanismos autonomizados que colonizam a vida dos indivíduos e lhes roubam autonomia e capacidade de escolha - essa deveria ser a tarefa fundamental das diferentes esquerdas.

Mas, assim como é um equívoco demonizar a direita - pois existem correntes moderadas e conservadoras que lutam legitimamente segundo as regras do jogo e, dentro da normal dialética democrática, não constituem retrocesso político ou social -, também não é suficiente, para a esquerda, a autocomplacência e a arrogância de se pretender, por definição, o "sal da terra". Apregoar pura e simplesmente "socialismo ou barbárie" significa cancelar, de modo míope, a tremenda realidade de que o século 20 conheceu formas bárbaras de socialismo, a seu tempo repudiadas pelas pessoas comuns às quais foram impostas.

Para onde quer que olhemos neste 2013, como dissemos, os sinais são às vezes iluminadores e às vezes, não. Por exemplo, perdemos Nelson Mandela, mas para reconstruir a esquerda a não violência é agora, e para sempre, valor estratégico. Como estratégico é compreender a política cada vez menos como coerção e cada vez mais como persuasão e convencimento mútuo. Sem abrir mão da intocável laicidade do Estado, patrimônio comum duramente conquistado, impossível ignorar, do ponto de vista da esquerda democrática, a bem-vinda presença de valores religiosos, revigorados por um pontífice que sob tantos aspectos traz à lembrança o afeto, a sabedoria e as luzes de João XXIII e seu Concílio Vaticano II - referência de diálogo entre as religiões, bem como entre religiosos e não religiosos.

Seria mesquinho reivindicar para um só lado do espectro político - qualquer que seja - o monopólio do terreno de encontro e diálogo. Ao contrário, a conquista maior consistiria em trazer para esse terreno a maior parte das forças políticas, sociais, intelectuais, sem apagar os bons motivos de diferença e divergência. Com isso aumentaríamos exponencialmente as chances de vencer os desafios da "emergência antropológica" à nossa frente. Mero desejo de um feliz 2014?

Duas ou três coisas sobre 2013 - LUIZ SÉRGIO HENRIQUES

O Estado de S.Paulo - 30/12

Nada difícil encontrar sinais contraditórios para onde quer que se olhe, no mundo e no Brasil, a confirmar que vivemos situação inédita em que não basta a navegação de cabotagem, quando acidentes geográficos familiares, ao alcance da vista, asseguram a tranquilidade do viajante. Agora, de cada um dos atores da cena pública o que se requer é a renovação ousada do repertório de conceitos e valores, de modo que, num cenário subitamente em movimento, encontros imprevistos entre tradições diferentes e até antagônicas podem descortinar modos novos de fazer política e cultura, à altura da situação que alguns definem como de "emergência antropológica", tamanhos os riscos (e as possibilidades) inerentes à atual estrutura do mundo.

Esta é toda uma época, como comumente se diz, de globalização neoliberal ou, se quisermos, de agressiva afirmação do "comunismo dos capitalistas", sob a égide dos caprichos voláteis e tempos velozes da grande finança. Uma época que pode ser lida sob a ótica da unificação contraditória do gênero humano, que deixa de ser categoria filosófico-especulativa para se tornar realidade imediatamente palpável para cada pessoa: já se observou, por exemplo, que até as doenças são globais, a exigir medidas que muitas vezes superam o poder de reação das autoridades de determinado país.

Nem tudo é perdição. Não vivemos, como diagnosticou certa esquerda de tons apocalípticos há um século diante do flagelo da guerra, a era da pecaminosidade absoluta. Indicadores confiáveis trazem a boa-nova segundo a qual, com tal processo de unificação do gênero, diminuiu consistentemente a pobreza em termos absolutos, embora as desigualdades sejam crescentes entre países e no interior dos diferentes países. Fenômeno agravado nestes últimos anos de impenitente crise, com seu cortejo dramático de desemprego estrutural, migrações massivas, tragédias econômicas que marcam o destino de milhões de pessoas.

Um bom diagnóstico, não pessimista, mas rigoroso em suas implicações, é o de que vivemos descompasso crescentemente insustentável entre a internacionalização das forças econômicas, que têm o mundo inteiro como seu teatro real, e a timidez da política - certamente, da política democrática, essa que mobiliza o interesse e a consciência de grandes massas -, cujo âmbito ainda são os Estados nacionais, relativamente impotentes para redefinir e regular correntes que superam amplamente sua capacidade de intervenção.

Esta, a realidade efetiva, para empregar expressão ao gosto de um clássico renascentista de 500 anos, completados no ano que ora finda. Inútil retornar, entre outras categorias, ao "finalismo" do comunismo do século 20, que imaginava a transição para um Estado ideal - o socialismo ou o comunismo, precisamente -, determinado pelo desenvolvimento das forças produtivas, que concretizaria, após o grande evento revolucionário, a hipótese do governo como mera administração das coisas. Uma realidade que comportaria, ainda, a supressão progressiva da mediação política, uma vez extirpadas as fontes básicas do conflito entre os homens. Para que, então, pensar o Estado, o Direito, a política - fantasmagorias destinadas a perecer paulatinamente, à medida que se aproximasse aquela imaginária e transparente realidade final da convivência humana?

Eis que descobrimos, ou redescobrimos, a ideia de que o movimento civilizatório é tudo, o fim é quase nada, ou, antes, será o que dele fizermos, em absoluta coerência com os meios de que lançarmos mão. Esquerda e direita ainda são palavras significativas na esfera pública, mas, além de palavras, devem se referir a coisas, situações, valores, classes, indivíduos. Apropriar-se, na medida do possível, dos mecanismos autonomizados que colonizam a vida dos indivíduos e lhes roubam autonomia e capacidade de escolha - essa deveria ser a tarefa fundamental das diferentes esquerdas.

Mas, assim como é um equívoco demonizar a direita - pois existem correntes moderadas e conservadoras que lutam legitimamente segundo as regras do jogo e, dentro da normal dialética democrática, não constituem retrocesso político ou social -, também não é suficiente, para a esquerda, a autocomplacência e a arrogância de se pretender, por definição, o "sal da terra". Apregoar pura e simplesmente "socialismo ou barbárie" significa cancelar, de modo míope, a tremenda realidade de que o século 20 conheceu formas bárbaras de socialismo, a seu tempo repudiadas pelas pessoas comuns às quais foram impostas.

Para onde quer que olhemos neste 2013, como dissemos, os sinais são às vezes iluminadores e às vezes, não. Por exemplo, perdemos Nelson Mandela, mas para reconstruir a esquerda a não violência é agora, e para sempre, valor estratégico. Como estratégico é compreender a política cada vez menos como coerção e cada vez mais como persuasão e convencimento mútuo. Sem abrir mão da intocável laicidade do Estado, patrimônio comum duramente conquistado, impossível ignorar, do ponto de vista da esquerda democrática, a bem-vinda presença de valores religiosos, revigorados por um pontífice que sob tantos aspectos traz à lembrança o afeto, a sabedoria e as luzes de João XXIII e seu Concílio Vaticano II - referência de diálogo entre as religiões, bem como entre religiosos e não religiosos.

Seria mesquinho reivindicar para um só lado do espectro político - qualquer que seja - o monopólio do terreno de encontro e diálogo. Ao contrário, a conquista maior consistiria em trazer para esse terreno a maior parte das forças políticas, sociais, intelectuais, sem apagar os bons motivos de diferença e divergência. Com isso aumentaríamos exponencialmente as chances de vencer os desafios da "emergência antropológica" à nossa frente. Mero desejo de um feliz 2014?

domingo, 29 de dezembro de 2013

A ópera do Satanás - LUIZ FELIPE PONDÉ
FOLHA DE SP - 23/12

Como cético que sou, estou seguro de que se deve desconfiar de pessoas com bons sentimentos


Sei que a esta altura do ano nada mais se quer além de esperar que, no calor de nosso verão, se vá este ano velho e surrado. Mas, como filósofo que sou, mesmo na preguiça, penso, senão, não existo. E levo você, meu companheiro de leitura, comigo às profundezas dessa filosofia de fim dos tempos.

Quando quero falar a sério com meus alunos --agora em férias-- sobre nosso tempo contemporâneo, digo a eles que imaginem do que rirão nossos descendentes em mil anos. Não conheço ciência profética mais científica do que pensar o ridículo que encontrarão em nossas seriedades contemporâneas.

Sou homem sem causa, como sabe bem meu ilustre leitor, e, mais, duvido de todos que alguma causa defendam. Espero que recuperem a capacidade de serem canalhas honestos, e não como nós, que travestimos nossas vaidades em causas pela humanidade.

Pouco sei com segurança, depois de alguns anos e alguns poucos livros, mas, com certeza, como cético que sou, estou seguro de que se deve desconfiar de pessoas com bons sentimentos.

Rimos de nossos antepassados. Se, antes, nossos avós os consideravam dignos de reverência, agora, nós, contemporâneos, os julgamos ridículos por terem vivido antes dos tablets e do direito ao voto.

Rimos de suas crenças em deuses cabeludos, em apocalipses vindouros, em mundos imateriais. Mas, temo, rirão mais ainda de nós, esses nossos descendentes.

Rirão de nossa inútil obsessão pelo povo e sua soberania. Rirão de nossa ciência política e sua consciência histórica. Rirão de nossa certeza sobre o aquecimento dos polos e voltarão à astrologia por ser ela uma ciência mais modesta do que a do clima.

Para eles, nossos descendentes, ideias como as nossas soarão como hoje nos soa alguém crer que trovões seriam os deuses arrastando suas pedras no infinito.

Rirão de nossa obsessão em buscar pureza em civilizações mais pobres como as dos índios, que seriam mais honestos simplesmente porque nunca tiveram opção de sofisticar suas mentiras, como nós temos.

Quando pensarem em nós, esquecerão nossa tecnologia neolítica e farão seus alunos lerem livros sobre como éramos covardes e infantis. E sentirão vergonha, preferindo os gregos e os romanos, por serem mais lúcidos sobre a cegueira do destino.

Tentarão inutilmente acessar a razoabilidade de crermos que inventamos a nós mesmos e de que exista algo como "construção social do sujeito", ideia interessante, se não engraçada, mas que sustenta outra ainda mais engraçada, que é aquela que afirma a existência de uma construção social planejada de novos sujeitos.

Tendo passado por sofrimentos atrozes que os esperam, sofrimentos esses criados por nós e nossas manias de luxo, saúde, direitos e democracia dos idiotas, os coitados dos nossos descendentes serão forçados a redescobrir que a vida tem dono, e que não somos nós os donos, mas sim algum espírito que, no fundo, não nos tem em alta conta, por isso, quando muito, revela sua indiferença preguiçosa para com nossa dor.

Reescreverão passagens bíblicas, porque chegarão à conclusão de que são mais certeiras do que nossa vã sociologia de macacos sem pelos.

Sua cosmologia e antropologia serão mais parecidas com aquela que afirma ser a vida uma ópera.

Sim, uma ópera, cujo libreto foi escrito por Deus e a música pelo Satanás, segundo o que nos diz Dom Casmurro, personagem atormentado pela incapacidade de determinar a verdade última acerca da fidelidade de sua mulher (talvez um dos problemas filosóficos mais sérios, muito mais do que o suicídio).

O Satanás, atormentado pela inveja de seus colegas Gabriel, Miguel e Rafael, se revoltou. Deus deixou, por preguiça, que ele levasse consigo, às profundezas do inferno, seu libreto.

Lá, tendo composto a música, criou a ópera. Voltou ao Pai Eterno, como criança escrava neurótica de seu senhor, e pediu a Deus que a executasse em seu conservatório.

Tendo negado inúmeras vezes o pedido de seu anjo angustiado, Deus acaba por autorizar a execução, mas o proíbe de fazê-lo nos céus.

Para esta tarefa, cria nosso mundo, e o dá ao nosso triste maestre
   

De onde vem a nossa dor ? Martha medeiros

ZERO HORA - 24/11

A dor nas costas vem das costas, a dor de estômago vem do estômago, a dor de cabeça vem da cabeça. E sua dor existencial, vem de onde?

Ela vem da história que você meio que viveu, meio que criou – é sabido que contamos para nós mesmos uma narrativa que nem sempre bate com os fatos. Nossa memória da infância está repleta de fantasias e leituras distorcidas da realidade. Mesmo assim, é a história que decidimos oficializar e passar adiante, e dela resultam muitas de nossas fraturas emocionais.

Nossa dor existencial vem também do quanto levamos a sério o que dizem os outros, o que fazem os outros e o que pensam os outros – uma insanidade, pois quem é que realmente sabe o que pensam os outros? Pensamos no lugar deles e sofremos por esse pensamento imaginado. Nossa dor existencial vem dessa transferência descabida.

Nossa dor existencial, além disso, vem de modelos projetados como ideais, a saber: é melhor ser vegetariano do que comer carne, fazer faculdade de medicina do que hotelaria, namorar do que ficar sozinho, ter filhos do que não ter, e isso tudo vai gerando uma briga interna entre quem você é e entre quem gostariam que você fosse, a ponto de confundi-lo: existe mesmo uma lógica nas escolhas?

Como se não bastasse, nossa dor existencial vem do que não é escolha, mas destino: quem é muito baixinho, ou tem cabelo muito crespo, ou é pobre de amargar, ou tem dificuldade de perder peso vai transformar isso em uma pergunta irrespondível – por que eu? – e a falta de resposta será uma cruz a ser carregada.

Nossa dor existencial vem da quantidade de nãos que recebemos, esquecidos que somos de que o “não” é apenas isso, uma proposta negada, um beijo recusado, um adiamento dos nossos sonhos, uma conscientização das coisas como elas são, sem a obrigatoriedade de virarem traumas ou convites à desistência.

Nossa dor existencial vem do bebê bem tratado que fomos, nada nos faltava, éramos amamentados, tínhamos as fraldas trocadas, ninavam nosso sono, até que um dia crescemos e o mundo nos comunicou: agora se vire, meu bem. Injustiça fazer isso com uma criança – alguém aí por acaso deixou totalmente de ser criança?

Nossa dor existencial vem da incompreensão dos absurdos, da nossa revolta pelos menos favorecidos, da inveja pelos mais favorecidos, da raiva por não atenderem nossos chamados, por cada amanhecer cheio de promessas, pela precariedade das nossas melhores intenções e pela invisibilidade que nos outorgamos: por que nunca ninguém nos enxerga como realmente somos?

Dor de dente vem do dente, dor no joelho vem do joelho, dor nas juntas vem das juntas. Nossa dor existencial vem da existência, que nenhum plano de saúde cobre, de tão difícil que é encontrar seu foco e sua cura.

De onde vem a nossa dor ? Martha medeiros

ZERO HORA - 24/11

A dor nas costas vem das costas, a dor de estômago vem do estômago, a dor de cabeça vem da cabeça. E sua dor existencial, vem de onde?

Ela vem da história que você meio que viveu, meio que criou – é sabido que contamos para nós mesmos uma narrativa que nem sempre bate com os fatos. Nossa memória da infância está repleta de fantasias e leituras distorcidas da realidade. Mesmo assim, é a história que decidimos oficializar e passar adiante, e dela resultam muitas de nossas fraturas emocionais.

Nossa dor existencial vem também do quanto levamos a sério o que dizem os outros, o que fazem os outros e o que pensam os outros – uma insanidade, pois quem é que realmente sabe o que pensam os outros? Pensamos no lugar deles e sofremos por esse pensamento imaginado. Nossa dor existencial vem dessa transferência descabida.

Nossa dor existencial, além disso, vem de modelos projetados como ideais, a saber: é melhor ser vegetariano do que comer carne, fazer faculdade de medicina do que hotelaria, namorar do que ficar sozinho, ter filhos do que não ter, e isso tudo vai gerando uma briga interna entre quem você é e entre quem gostariam que você fosse, a ponto de confundi-lo: existe mesmo uma lógica nas escolhas?

Como se não bastasse, nossa dor existencial vem do que não é escolha, mas destino: quem é muito baixinho, ou tem cabelo muito crespo, ou é pobre de amargar, ou tem dificuldade de perder peso vai transformar isso em uma pergunta irrespondível – por que eu? – e a falta de resposta será uma cruz a ser carregada.

Nossa dor existencial vem da quantidade de nãos que recebemos, esquecidos que somos de que o “não” é apenas isso, uma proposta negada, um beijo recusado, um adiamento dos nossos sonhos, uma conscientização das coisas como elas são, sem a obrigatoriedade de virarem traumas ou convites à desistência.

Nossa dor existencial vem do bebê bem tratado que fomos, nada nos faltava, éramos amamentados, tínhamos as fraldas trocadas, ninavam nosso sono, até que um dia crescemos e o mundo nos comunicou: agora se vire, meu bem. Injustiça fazer isso com uma criança – alguém aí por acaso deixou totalmente de ser criança?

Nossa dor existencial vem da incompreensão dos absurdos, da nossa revolta pelos menos favorecidos, da inveja pelos mais favorecidos, da raiva por não atenderem nossos chamados, por cada amanhecer cheio de promessas, pela precariedade das nossas melhores intenções e pela invisibilidade que nos outorgamos: por que nunca ninguém nos enxerga como realmente somos?

Dor de dente vem do dente, dor no joelho vem do joelho, dor nas juntas vem das juntas. Nossa dor existencial vem da existência, que nenhum plano de saúde cobre, de tão difícil que é encontrar seu foco e sua cura.
Detalhes, detalhes - LUIS FERNANDO VERISSIMO
O GLOBO - 29/12

Diferença do status do negro nas sociedades americana e brasileira, uma racista e outra pretensamente não, pode ser encontrada na quantidade de pianistas negros



Há muitas maneiras de se medir progresso, ou pelo menos mudanças históricas, além dos frios números de uma economia ou além da sociologia convencional. Muitas vezes o detalhe que não é notado é o mais revelador. O Marshall McLuhan (lembra dele?) construiu uma tese inteira em cima da importância da invenção do estribo de cavalo na história do Ocidente. O estribo significou que o aristocrata também passasse a participar das batalhas junto com o pobre soldado a pé, com tudo que isso implicava de novo em questões como relações hierárquicas — e de mortandade entre aristocratas. A história das armas de guerra, que no fim é a história da civilização, pode ser medida em detalhes como o aumento da distância possível para se matar um inimigo, começando com o olho no olho e o tacape na mão do tempo das cavernas, passando pela espada, a lança, o arco e flecha, a catapulta, o mosquete, o fuzil, o canhão, o bombardeio aéreo, etc. e culminando no drone teleguiado, o mais longe que se pode chegar do inimigo sem precisar olhar no seu olho.

Ainda não foi tema de nenhum tratado sociológico, que eu saiba, mas a diferença entre o status do negro nas sociedades americana e brasileira, uma evidentemente racista e outra pretensamente não, pode ser encontrada em um detalhe, a quantidade de pianistas negros nos Estados Unidos em contraste com quase nenhum no Brasil. O jazz teve duas vertentes, três se você contar os blues: as bandas de rua, que desfilavam, obviamente, sem pianos, e o ragtime, que era jazz exclusivamente de piano, já tocado, lá nas origens, por músicos negros como Jelly Roll Morton. Pianistas negros pressupõem piano em casa, dinheiro para pagar as aulas, tempo para praticar — ou seja, pressupõem uma classe média. Em Nova Orleans e em outras capitais do Sul dos Estados Unidos, em meio ao apartheid oficial, à discriminação aberta, aos linchamentos e outros horrores, desenvolveu-se uma classe média negra, paralela à branca, com identidade e poder econômico próprios. No Brasil do racismo que não se reconhece como tal, e talvez por causa disto, não aconteceu nada parecido.

Claro, a história econômica dos dois países explica o contraste, mais do que racismo declarado ou disfarçado, mas neste detalhe a diferença fica clara. No Brasil, como nos Estados Unidos, existem grandes músicos saídos de todas as classes sociais. Mas ainda não produzimos pianistas negros em número suficiente para desmentir a nossa hipocrisia racial

domingo, dezembro 29, 2013

Feliz ano todo - ADRIANA CALCANHOTTO

O GLOBO - 29/12

Feliz mergulho no Arpoador dia 31, feliz longa lista de metas para ser toda descumprida


Assisti ao monstro de olhos azuis chamado Tônia Carrero, perguntada em entrevista sobre se era feliz, responder calmamente: “sou feliz e infeliz várias vezes ao dia”. Bingo. A felicidade vai e vem o tempo todo. Ou, convenhamos, seria um tédio de matar. É então nesse espírito, de estar feliz, significando que se estará infeliz daqui a pouco e feliz de novo e infeliz, e assim por diante vida afora, que desejo aos compadres felicidades no ano que vem.

Feliz mergulho no pôr do sol no Arpoador dia 31, feliz longa lista de metas para o ano para ser descumprida inteira. Feliz virada de ano uma hora antes da meia-noite, pobres ouvidos dos bichos, feliz fogos de artifícios. Feliz volta de Copacabana de metrô, feliz carteira batida, feliz ressaca no primeiro dia do ano. Feliz garis achando moedas, celulares, joias, amuletos e calcinhas na areia. Feliz alagamentos causados por bueiros entupidos pelo lixo que devia ser jogado no lixo, não no chão. Feliz leitura de “Fim”, o romance de estreia da Fernanda Torres. Feliz deslizamentos nas encostas durante o verão e o estaremos providenciando. Feliz quaresmeiras floridas, feliz andorinhas voando em direção ao Norte. Feliz esquenta de carnaval, feliz grito de carnaval, feliz carnaval, feliz saltos quebrados no carnaval, feliz ar-condicionado para não ouvir o carnaval lá fora. Feliz crise no relacionamento por conta do carnaval, feliz desfile das campeãs. Feliz, então, acho que agora sim, ano novo.

Feliz volta às aulas, feliz primeira ida para a primeira aula. Feliz de quem tem aulas para ir. Feliz palmas para os guerreiros professores. Feliz fotos de servidores públicos com maços de dinheiro sob roupas de baixo. Feliz despedida de uma misógina enrustida do comando da comissão dos direitos humanos. Feliz psicodélicas previsões de crescimento da economia, feliz contas públicas mais mal maquiadas do que aquelas velhinhas inglesas que não enxergam mais nada e aplicam a sombra verde acima das sobrancelhas e o batom vermelho no buço.

Feliz outono no Rio. Feliz cheiro de jasmim à noite. Feliz páscoa, feliz dieta pós-páscoa, feliz construção do Pavilhão da Esdi, feliz deslumbrante luz de maio, feliz tucanos nas palmeiras, que comem os filhotes dos outros pássaros, mas apanham do bem-te-vi. Feliz macacos-prego levando seu bolo de fubá árvore acima. Feliz tigre na cabeça no botequim da esquina. Feliz branquinha no balcão. Feliz inaugurações de piscinões binários. Feliz inaugurações de construções em ruínas. Feliz noites dormidas na rua sob marquise estreita com chuva forte tendo papelão e jornal como cobertor. Feliz mês das noivas, feliz provas de vestido, feliz provas de amor, feliz provas de fidelid… Feliz dia das mães. Feliz luz nos morros de manhã bem cedinho, feliz pedras no meio do caminho. Feliz imbecis pichando a estátua do poeta. Feliz explosão de bueiros. Feliz muros grafitados. Feliz esperança de que a Rita Lee venha morar no Rio. Feliz anúncio de banco vendendo mais endividamentos a “você, a pessoa mais importante do mundo para nós”. Feliz carga tributária. Feliz estádios com obras atrasadas precisando de mais e mais dinheiro.

Feliz chopinho na esquina, feliz nada pra fazer. Feliz festa na laje, feliz baile funk. Feliz chão, chão, chão, chão. Feliz sorriso do Nelson Sargento. Feliz feijoada da tia Surica. Feliz coalizações lisérgicas para disputar a presidência da pobre República. Feliz alianças que dão vergonha na gente. Feliz promessas humanamente incumpríveis, feliz direito de votar. Feliz voto. Feliz melhor projeto para o Brasil. Feliz água de coco no calçadão. Feliz multa por jogar lixo no chão. Feliz compre seu carro novo, compre seu carro novo compre seu carro novo. Feliz paciência no trânsito. Feliz trens e ônibus atrasados, abarrotados, feliz vagões femininos. Feliz cadeias piores que o inferno. Feliz salve a seleção. Feliz compre sua TV, compre sua TV, compre sua TV, compre sua TV, compre sua TV. Feliz Copa “do Mundo da Fifa”. Feliz seja lá o que tiver de ser. Feliz Lei Maria da Penha. Feliz Flip. Feliz crianças atingidas por balas perdidas e sumiços de trabalhadores sem qualquer explicação. Feliz pelada, feliz pedalada, feliz futevôlei na praia. Feliz biscoito Globo, feliz mate gelado. Feliz possibilidade de ver o Ferreira Gullar zanzando por Copacabana.

Feliz sequência de ondas verdes parecendo esmeralda líquida. Feliz ondas, feliz vacas, feliz caldos. Feliz fale mais, fale mais, fale mais, fale mais, fale mais. Feliz “este número de telefone não existe”. Feliz parada gay. Feliz feriado de Zumbi dos Palmares. Feliz turistas na favela, feliz meninos jogando bola. Feliz bicicletas roubadas. Feliz juiz filho da puta. Feliz dicas de livros da Cora. Feliz topless em paz. Compadres queridos, um feliz ano todo.
      
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Comida - FÁBIO PORCHAT

O Estado de S.Paulo - 29/12

Eu gosto de comer. Talvez seja a coisa que eu mais goste de fazer na vida. Todo mundo precisa comer e isso eu já acho bem democrático. Cada um gosta de uma coisa diferente e tem percepções diferentes em relação aos sabores, o que já torna qualquer comida muito interessante. E comer te coloca em contato direto com o lugar onde você está, o que é bem instigante.

Eu adoro viajar. Talvez seja a segunda coisa que eu mais goste de fazer na vida. Comer durante uma viagem então, é pra mim um acontecimento. É uma atração turística. Coliseu, Muralha da China, Pirâmides e um tutu à mineira em Belo Horizonte. Pra mim, é tudo a mesma coisa.

E quando eu digo comer, não é ir a um restaurante chique e importado. É ir onde a comida é mais gostosa. Na casa da minha mãe ou na Famiglia Mancini. No dogão do estádio ou naquele restaurante que serve leitão lá em Portugal. Comer envolve todos os sentidos. Se você é dos meus, sabe só pelo cheirinho vindo da área de serviço o que o seu vizinho tá preparando pro jantar. Consegue dizer que aquela coxinha da padoca é perfeita só de olhar ela deitadinha ali no papel toalha. Sabe que aquela fatia de bolo vale a pena desde o momento em que você pegou nela com a mão. Se você já foi a uma feira, sabe que aquele barulhinho da fritura do pastel é impagável. E, assim que você coloca uma comida na boca, não tem erro: ou é boa, ou não é. E quando é... Ah... E eu gosto de coletar dicas de restaurantes pelo Brasil e pelo mundo com conhecidos. Tento testar todos.

Todo mundo tem um restaurante que vai lembrar pelo resto da vida. E comida boa a gente não lembra, a gente descreve em detalhes pra pessoa que estiver ao lado. Ninguém come um polvo com arroz de brócolis inesquecível. Você come um polvo grelhado no azeite, puxado no alho e na manteiga até ele ficar tostadinho e depois você joga um limãozinho por cima pra acompanhar aquele arroz soltinho e verdinho de um brócolis que derrete na boca. Isso é um polvo com arroz de brócolis memorável.

Outra forma de descrever uma comida deliciosa é o adjetivo ser algum parente da sua família. Por exemplo: a farofa da minha mãe. Se é da sua mãe, eu não tenho a menor dúvida de que ela é a melhor farofa do mundo. O coquetel de camarão da Tia Dirce. Imbatível. O frango com quiabo do meu padrasto. Perfeito. Você sabe quando alguém não gostou muito do prato se quando você pergunta: gostou? A pessoa responde: gostei. Não gostou. Se tivesse gostado respondia: muito! Quem come sabe. Muito - é porque é muito. Gostei - é porque é o que tinha. Esse natal eu vou passar longe da minha família. Uma pena saber que perderei todas aquelas comidas maravilhosas que as minhas tias fazem. Mas com certeza alguém lá vai ficar feliz com isso. Porque vai sobrar mais! Bem mais, porque eu como. Eu gosto de comer. Muito.
      
 
 
 
      
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Comida - FÁBIO PORCHAT

O Estado de S.Paulo - 29/12

Eu gosto de comer. Talvez seja a coisa que eu mais goste de fazer na vida. Todo mundo precisa comer e isso eu já acho bem democrático. Cada um gosta de uma coisa diferente e tem percepções diferentes em relação aos sabores, o que já torna qualquer comida muito interessante. E comer te coloca em contato direto com o lugar onde você está, o que é bem instigante.

Eu adoro viajar. Talvez seja a segunda coisa que eu mais goste de fazer na vida. Comer durante uma viagem então, é pra mim um acontecimento. É uma atração turística. Coliseu, Muralha da China, Pirâmides e um tutu à mineira em Belo Horizonte. Pra mim, é tudo a mesma coisa.

E quando eu digo comer, não é ir a um restaurante chique e importado. É ir onde a comida é mais gostosa. Na casa da minha mãe ou na Famiglia Mancini. No dogão do estádio ou naquele restaurante que serve leitão lá em Portugal. Comer envolve todos os sentidos. Se você é dos meus, sabe só pelo cheirinho vindo da área de serviço o que o seu vizinho tá preparando pro jantar. Consegue dizer que aquela coxinha da padoca é perfeita só de olhar ela deitadinha ali no papel toalha. Sabe que aquela fatia de bolo vale a pena desde o momento em que você pegou nela com a mão. Se você já foi a uma feira, sabe que aquele barulhinho da fritura do pastel é impagável. E, assim que você coloca uma comida na boca, não tem erro: ou é boa, ou não é. E quando é... Ah... E eu gosto de coletar dicas de restaurantes pelo Brasil e pelo mundo com conhecidos. Tento testar todos.

Todo mundo tem um restaurante que vai lembrar pelo resto da vida. E comida boa a gente não lembra, a gente descreve em detalhes pra pessoa que estiver ao lado. Ninguém come um polvo com arroz de brócolis inesquecível. Você come um polvo grelhado no azeite, puxado no alho e na manteiga até ele ficar tostadinho e depois você joga um limãozinho por cima pra acompanhar aquele arroz soltinho e verdinho de um brócolis que derrete na boca. Isso é um polvo com arroz de brócolis memorável.

Outra forma de descrever uma comida deliciosa é o adjetivo ser algum parente da sua família. Por exemplo: a farofa da minha mãe. Se é da sua mãe, eu não tenho a menor dúvida de que ela é a melhor farofa do mundo. O coquetel de camarão da Tia Dirce. Imbatível. O frango com quiabo do meu padrasto. Perfeito. Você sabe quando alguém não gostou muito do prato se quando você pergunta: gostou? A pessoa responde: gostei. Não gostou. Se tivesse gostado respondia: muito! Quem come sabe. Muito - é porque é muito. Gostei - é porque é o que tinha. Esse natal eu vou passar longe da minha família. Uma pena saber que perderei todas aquelas comidas maravilhosas que as minhas tias fazem. Mas com certeza alguém lá vai ficar feliz com isso. Porque vai sobrar mais! Bem mais, porque eu como. Eu gosto de comer. Muito.