quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Voçê tem consciência de sua alta imagem ?

Em um inesperado momento de sua vida, você se depara com uma imagem refletida no espelho da existência. Olhamos, olhamos novamente, voltamos a olhar e, após grande hesitação, reconhecemos: trata-se de nós mesmos!
Trata-se de um “nós” refletido em uma imagem que desconhecíamos ou, talvez, insistíamos em não reconhecer. Somos incrivelmente hábeis para fugir de nós mesmos e tremendamente covardes para nos buscar por trás das aparências.
Mas esta imagem, cedo ou tarde, aparece e com ela vem uma dor forte e intensa: a dor de descobrirmo-nos como somos e não como gostamos de pensar que somos.
Este “outro” no espelho da existência, parece tão diferente de nós. Não que seja mais feliz ou mais triste... é diferente, muito diferente.
Esta imagem, às vezes é trazida pela sinceridade de um verdadeiro amigo (aquele que diz o que precisamos ouvir); às vezes é trazida por uma dor de amor (onde quem amamos, desiludido por alguma situação, desabafa o que sempre pensou e nunca revelou a nosso respeito), outras vezes é trazida pela reflexão, psicoterapia ou busca espiritual.
Corajosos, nos achamos covardes.
Fortes, nos reconhecemos fracos.
Altruístas, nos surpreendemos egoístas.
Vencedores, nos descobrimos com inveja.
Humildes, visualizamos nossa vaidade.
Pacíficos, encontramos a raiva.
Religiosos, nos vemos sem fé.
Bons, nos percebemos ainda maus.
Belos, nos vemos distorcidos.

Distorcidos pelas lentes da realidade!? Que tipo de distorção é esta que nos mostra como somos?
Esta imagem choca e nos faz parecer monstros aos nossos próprios olhos. Caem as escamas que impediam a nossa visão... E a luz fere os olhos acostumados à escuridão.
Vivemos muito tempo no escuro, onde podemos dizer coisas sem olhar nos olhos e acertar os cabelos sem, de fato, olhar no espelho.
O espelho do outro, o espelho de quem nos ama, o espelho de quem amamos, o espelho do amigo, da amiga, do pai, mãe, irmão, professora...
O espelho do outro revela uma imagem que é nossa. Por que tardamos tanto em ver a nós mesmos como somos?
Não, não é somente por medo e covardia, é também por falta de maturidade. Este dom que o tempo traz aos que o buscam verdadeiramente. A maturidade não é obra do tempo, é obra de um coração sincero que viaja no tempo.
Não somos monstros! Não somos santos! Somos homens e mulheres em busca de nós mesmos.
Em um determinado momento, em um inesperado momento de sua vida, uma imagem aparece em “um espelho”. Não a trate como um desconhecido. Trata-se do seu próximo mais próximo, aquele a quem devemos amar primeiramente no exercício de amar ao próximo, alguns milímetros, metros ou quilômetros, mais distantes.
Este desconhecido somos nós mesmos. A imagem no “espelho” pede ajuda! Ela precisa ser reconhecida e auxiliada, não consegue respirar, sufocada por aquilo que fingimos ser.
Não somos santos nem monstros. Somos seres humanos, que, de tão humanos, não nos reconhecemos disfarçados por trás do herói que gostaríamos de ser. Heróis são pessoas comuns que encontram a si mesmas! Por isso são fortes, porque não estão divididas entre o que são e o que pensam ser. Simplesmente vivem como são: autênticas.
A dor da autenticidade é o preço da descoberta do caminho que leva à felicidade.
Seja feliz! Viva a autenticidade. Vai doer, todo nascimento implica algum tipo de dor, mas a vida celebrará com sorrisos o que as lágrimas da descoberta evidenciam, ao lavar olhos, como que eliminando as imagens passadas.
Na ausência da autenticidade não há vida, somente a morte do nosso verdadeiro “eu”.
Monstros não refletem sobre seus sentimentos, erros e acertos. Tornar-se “santo” é uma meta, não um ponto de partida. Todo “santo” teve um passado e todo “pecador” terá um futuro!
Ninguém vencerá o mundo sem conhecer o mundo, ninguém transcende a matéria sem ter sido “matéria”. Nossos erros são apenas virtudes que ainda não aprenderam a direção...
Ou, por acaso, você nunca parou para pensar que um teimoso pode tornar-se persistente? O teimoso é um indivíduo egocêntrico que está mais preocupado em ter razão que em encontrar a razão. O teimoso caminha em círculos. Já o persistente, possui metas mais claras, aceita opiniões e toda a ajuda que o auxilie a chegar lá. O persistente aprendeu a caminhar em linha reta, na direção de seus objetivos e metas. Enquanto persistência é uma virtude, teimosia é um defeito. Quando damos uma direção à teimosia e nos libertamos das ilusões de nossas egotrips, aprendemos a ser persistentes.
Faça de seus erros, razões para acertar. Seres humanos não aprendem com seus erros, aprendem consertando seus erros...
Neste exato momento, há uma imagem refletida no “espelho” deste texto. Não a trate como um desconhecido...

Carlos Hisdof



 



Para que serve a celebridade? - ROBERTO DAMATTA

O GLOBO - 29/01

Quero começar com uma nota sobre a celebrização como um problema e como um valor. A ultima besteira aprontada pelo jovem cantor Justin Bieber, que minhas netas mais novas idolatram (ou idolatravam), ajuda e, intrigantemente, coincide com o que elaborei na semana passada sobre esse tema.

Uma sociologia da modernidade avançada, globalizada e marcada pelo hiperconsumo não pode deixar de meditar sobre a celebrização e o sucesso como paradoxos. Pois como distinguir e buscar a fama que inevitavelmente leva as pessoas para cima ou para baixo numa sociedade fundada num individualismo igualitário que horizontaliza?

Deste ponto de vista, a celebrização traz à tona a hierarquia (ou um centro desejado) como um valor implícito ou até mesmo envergonhado num sistema que, idealizadamente, se pensa como descentralizado porque é feito de iguais. A celebrização revela também como o sistema oscila entre a ênfase no individual (ou nas suas peças ou partes) e em como essas partes se relacionam entre si formando um tecido ou uma totalidade. A regra é salientar a parte, mas a celebrização não nos deixa esquecer o todo. Talvez essa seja sua principal função e ela está contida na pergunta: por que ele (ou ela) e não eu?

Não se trata, como bem viu Tocqueville, de achar que o regime igualitário suprima a excelência ou a singularidade extraordinária que dimensionam o ideal da aristocracia; mas de ter suficiente lucidez para compreender que a igualdade não suprime a gradação; e que a ênfase no individuo ou na parte não acabam com o todo. O numero um em alguma esfera das artes não liquida os elos entre as pessoas. As coletividades humanas são reconhecidamente humanas, justamente porque preservam essas dimensões.

Há o momento da celebrização e o momento em que ela, como o Justin Bieber condenado, revela o jovenzinho banal, igualzinho aos nossos filhos e netos.

Num mundo igualitário, o processo de celebrização legitima a crença de que todos são iguais e alguns se diferenciam pelo talento. É o caso especifico do esporte e das artes musicais e cênicas, mas isso não exclui paternalismos, favores, preferências e familismos que marcam todos os campos, sobretudo o do poder.

O que chama a atenção hoje em dia é o acasalamento às vezes patológico entre uma hiperdistinção (caso de alguns astros da música popular e do esporte) e uma espécie de autoflagelação por meio do uso abusivo da liberdade. Um menino que fica milionário aos 15 anos e vive numa sociedade que lhe garante o espaço de ser feliz a seu modo corre o risco de ser engolido e, eventualmente, morto pelo seu tão desejado sucesso!

Como naquela famosa capa da “New Yorker”, comentada nesta coluna, na qual os Oscars comiam como sobremesa os artistas premiados. Afinal, se os cavalos não são domados, eles acabam nos guiando.

Para que serve então a celebridade? Ela agencia uma diferenciação num mundo que se deseja construído de iguais. Os seus perigos são claros: toda pessoa célebre tem uma superespecialização que se confunde com um dom. O famoso é a tela na qual as pessoas comuns projetam os que lhes falta. Os mitos das celebridades insistem em dizer como elas foram pessoas simples e pobres antes de obterem a tão desejada fama. O astro é, entre outras coisas, um especialista no que faz e um modelo do que faz. Daí a tendência a confundir o seu papel público com a sua intimidade. A suposição de uma excepcionalidade em tudo se desfaz e decepciona quando ocorre um desvio entre a figura que aparece no palco e a figura que surge — bêbado, burro, arrogante, desonesto, corrupto e, acima de tudo, infeliz como todo mundo — na vida real. Isso é acentuado pela nossa busca de coerência, a qual inventou sua tecnologia.

Do outro lado do universo das celebrizações para cima, há o conjunto de empregados e de inferiores que congrega as “celebridades para baixo”. Os garçons, engraxates, motoristas, porteiros e empregados em geral que fazem a nossa comida, lavam a nossa roupa, vigiam nosso lar e nos protegem do mundo. Esses fornecedores de amor, atenção e carinho preenchem um espaço que não ocupamos e passam a impressão de que vivem apenas para o que fazem. Para muitos, ver a empregada namorando é tão surpreendente quanto descobrir que a sua celebridade favorita tem um péssimo caráter.

Esse time de empregados: secretários, assessores e subdiretores que, na política, desculpam-se pelos seus superiores quando a Fifa ou Comité Olímpico Internacional ou uma chuvarada revela como nada está pronto e há um atraso crônico e insuportável na infraestrutura nacional.

No Brasil, as autoridades não pedem desculpas. No máximo, elas dãodesculpas por meio dos seus “peles” ou asseclas. As obras que jamais ficam prontas em tempo e o cara de pau ministro diz que as empreiteiras precisam ser mais responsáveis. Mas quem contrata essas empresas?

Se as celebridades não podem ser escusadas dos seus delitos, o mesmo deve ocorrer com a autoridade que, na maioria dos casos, lamentavelmente torna-se uma celebridade pelo que não fez; ou, pior que isso, pela sua inestimável contribuição ao atraso do país

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Acreditar que todas as coisas são um milagre

Pode ser que um dia deixemos de nos falar...
Mas, enquanto houver amizade,
Faremos as pazes de novo.

Pode ser que um dia o tempo passe...
Mas, se a amizade permanecer,
Um de outro se há-de lembrar.

Pode ser que um dia nos afastemos...
Mas, se formos amigos de verdade,
A amizade nos reaproximará.

Pode ser que um dia não mais existamos...
Mas, se ainda sobrar amizade,
Nasceremos de novo, um para o outro.

Pode ser que um dia tudo acabe...
Mas, com a amizade construiremos tudo novamente,
Cada vez de forma diferente.
Sendo único e inesquecível cada momento
Que juntos viveremos e nos lembraremos para sempre.

Há duas formas para viver a sua vida:
Uma é acreditar que não existe milagre.
A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre.
Albert Einstein

Religião sustentável

O Dalai Lama defende tudo que gente legal defende: o verde, a tolerância com o "outro", um capitalismo do bem, enfim, uma religião sustentável nos termos que ocidentais que migram pra religiões orientais costumam gostar, ou seja, de baixo comprometimento religioso. Além de, nela, não ter nenhum parente chato.

Uma religião sustentável é uma religião na qual ninguém tem de sustentar nada além de uma dieta balanceada, uma bike legal e um pouco de meditação durante a semana. De empresários "do bem" aos falantes da língua tibetana, muita gente correu pra ouvir essa sabedoria "estrangeira". 

Religiões são sistemas de sentido. A vida, aparentemente sem muito sentido, precisa de tais sistemas. A profissão pode ser um. A dedicação aos filhos, outro. A história, a natureza, grana também serve. Enfim, muita coisa pode dar sentido a uma existência precária como a nossa, mas nada se compara a uma religião.
 
Para funcionar, as religiões têm de garantir crenças e constranger comportamentos a partir de liturgias, mitos, exercícios de poder sacerdotais e regras cotidianas munidas de "sentido cósmico". 

Você não "acessa" o sentido oferecido sem "pagar", com a própria adesão, o pacote completo. Isso serve para o catolicismo e para o budismo, ao contrário do que pensa nossa vã filosofia "nova era". No Oriente, o budismo é uma religião como qualquer outra, cheia de vícios e abusos. 

A crítica à religião no Ocidente passou pela mão de grandes pensadores. Freud disse que religiosos são obsessivos que não sobreviveram bem à falta de amor incondicional da mãe e à miserável castração do pai verdadeiro, daí creem num Deus todo-poderoso que os ama. 

Nietzsche identificou o ressentimento como marca dos religiosos que são todos uns covardes. Feuerbach sacou que Jesus é a projeção alienante de nosso próprio potencial. 

Marx acrescentou que essa alienação é concreta e que se ganha dinheiro com isso. 

Enfim: o religioso é um retardado, ressentido, alienado e pobre, porque gasta dinheiro com o que não deve, a saber, os "profissionais de Deus". 

O que eu acho hilário é como muito "inteligentinho" acha que o budismo seja uma religião diferente das "nossas". 

Ela seria sem "vícios" e "imposições". Pensam, em sua visão infantil das religiões orientais, que dramas sexuais só afetam celibatários de Jesus e não os de Buda, e que o budismo, por exemplo, é "legal", porque não tem a noção de pecado. 

O budismo ocidental que cultua o Dalai Lama é o que eu chamo de budismo light. O perfil desse budista light é basicamente o seguinte. 

Vem de classe social elevada, fala línguas estrangeiras, é cosmopolita, se acha melhor do que os outros (apesar de mentir que não se acha melhor, claro), tem formação superior, mora na zona oeste ou na zona de sul de São Paulo, come alimentos orgânicos (caríssimos) e é altamente orientado para assuntos de saúde do corpo (um ganancioso com a vida, claro). 

E, acima de tudo, acha sua religião de origem (judaísmo ou catolicismo, grosso modo) "medieval", dominada pelo interesse econômico, e sempre muito autoritária. 

Na realidade, as causas da migração para o budismo light costumam ser um avô judeu opressivo, uma freira chata e feia na escola e uma revolta básica contra os pais. 

Em extremos, a recusa em arrumar o quarto quando adolescente ou um escândalo de pedofilia na Igreja Católica. Além da preguiça de frequentar cultos e de ter obrigações religiosas. 

Enfim, essas são a bases reais mais comuns da adesão ao budismo light, claro, associadas à dificuldade de ser simplesmente ateu. 

A busca por uma espiritualidade light é como a busca por uma marca de jeans, uma pousadinha numa praia deserta no Nordeste ou um restaurante de comida étnica da moda.
 
A espiritualidade do budismo light é semelhante a uma Louis Vuitton falsa. Brega.
 
Felipe Pondé

Os homens não sabem dar prazer sexual as suas mulheres

Em seu livro, você diz que a emancipação sexual não levou à liberdade sexual. Por que?
O que se vê hoje é um momento de exibicionismo feminino, uma rivalidade maior entre as mulheres para saber quem tem maior sucesso entre os homens e uma disputa maior entre os homens para conseguir as mulheres mais atraentes. Além disso, há uma ênfase exagerada na aparência física e uma obsessão pelas coisas superficiais. As pessoas ainda fazem práticas sexuais, de acordo com os filmes pornográficos, que se tornaram referência para as trocas eróticas. O resultado é muito triste e é o oposto do que se pretendia com os movimentos pela emancipação sexual.
 
Mas não houve um avanço nas conquistas femininas?
O mais relevante foi a emancipação das mulheres e a pílula anticoncepcional que criou uma oportunidade de igualdade entre homens e mulheres. Porém, infelizmente, as mulheres copiaram os padrões masculinos. No movimento hippie, era o contrário: os homens buscavam um jeito mais delicado de ser. Eles usavam bolsas, batas indianas, chinelos de dedo. Nos anos 80, elas começaram a usar o terno e a gravata e passaram a competir mais com os homens. A entrada das mulheres no mercado de trabalho dessa maneira foi ruim, porque atiçou ainda mais a disputa entre todos os lados. É importante dizer que foram elas que ganharam essa disputa. Hoje há mais mulheres nas universidades e, em países como os Estados Unidos, elas já ganham mais que os homens. Só que elas fizeram isso dentro de um padrão masculino.
 Por que você diz que os homens ainda não sabem dar prazer às mulheres?
Os homens começaram a oferecer mais prazer às mulheres, mas por conta da indústria pornográfica, eles retrocederam. Nos anos 70, o relatório Hite (Relatório Hite sobre a Sexualidade Feminina, de Shere Hite) explicou que a maioria delas tinha orgasmos com a estimulação clitoriana e não pela penetração vaginal. Para as mulheres, isso foi um grande alívio, porque muitas das que tinham orgasmo clitoriano se sentiram normais. Antes disso, a psicanálise considerava o orgasmo clitoriano como algo infantil, o que era uma bobagem. Então esse relatório liberou as mulheres para terem o orgasmo clitoriano. Só que com o avanço da indústria pornográfica, o orgasmo vaginal voltou a ser valorizado, talvez por ser mais cinematográfico. Então, as mulheres voltaram a se sentirem frustradas e, hoje fingem orgasmos vaginais como nunca, até imitando os filmes, com os barulhos e vozes.

O acesso à pornografia na internet tem algum tipo de influência nos relacionamentos?
Claro que sim. Há 15 anos, as mulheres detestavam o sexo anal. Agora, ele é bom. Quem inventou isso? A indústria pornográfica. Sempre doía, agora não dói mais. Isso parece moda. Quando eu era menino, o sexo anal era mais comum, porque as meninas queriam permanecer virgens. Se elas faziam sexo anal, os meninos achavam o máximo conseguir a relação vaginal. Teve uma época que nem prostituta fazia sexo oral. Hoje qualquer menino de 14 anos faz sexo oral na paquera, antes mesmo de beijar. Curioso isso, não?
Você diz que é importante distinguir desejo de excitação. Por quê?
O que eu digo é que na criança só existe excitação. Porque sexo e amor são coisas bem distintas. Então, quando você não separa essas duas coisas, parece que a criança sente desejo sexual pela mãe, o que não é verdade. O que ela sente é amor pela mãe e o que ela quer é o colo, um remédio para o seu desassossego, um alívio, um amparo. O amor acontece desde o primeiro momento de vida da criança. Já o sexo aparece quando ela tem dois anos e começa a tocar certas partes de seu corpo e descobrir que há sensações agradáveis, a excitação. Portanto, descobre a excitação por nós mesmos, enquanto que precisamos do outro para saber o que é amor. A excitação segue assim por toda a infância, mesmo quando as crianças brincam de trocar carícias e imitam o que vêem como parte da vida adulta. Na vida adulta, o desejo aparece a partir da puberdade por conta da estimulação visual, principalmente nos homens. Já as mulheres ficam excitadas ao perceberam que são desejadas. Elas desejam serem desejadas. Portanto, isso não é desejo e sim excitação. O desejo é mais ativo, é a vontade de atacar o outro, de agarrar o outro e envolve um objeto externo, como estimulador do sexo. A excitação pode ser feita sem o outro, só pela via táctil.

É possível separar o sexo do poder?
Sexo e poder tem parentescos muito próximos. E eu não gosto desse lado aristocrático do sexo, porque justamente favorece uma pequena maioria e prejudica a grande maioria. E tudo o que se tentou fazer no movimento “faça amor e não faça guerra” não deu certo, porque o sexo está a serviço da guerra. Nos homens, é muito forte a relação entre sexo e agressividade. Quando se libera a sexualidade, a agressividade é liberada. Não existe o “fazer amor”, existe o “sentir amor”.

Por que você diz que existe ainda hoje uma maior disponibilidade feminina do que masculina?
Entre o feminino e masculino existem duas grandes diferenças, uma é a do desejo visual. A outra é que, no homem, existe um período chamado refratário. Depois que ele ejacula tem um período de desinteresse sexual, de quase aversão à sexualidade que pode ir de dois minutos até 24 horas. Dependendo da idade do homem, da parceira. Isso é uma indisponibilidade sexual. A mulher mesmo depois mesmo depois de um ou múltiplos orgasmos, ela tem uma excitação residual. Ela continua disponível sexualmente. Isso faz com que ela possa ter dez relações sexuais numa noite. Nos casais, é sempre melhor que a mulher tenha orgasmo primeiro. Até na indústria de sacanagem, quando o homem ejacula, para o filme.

Por que você diz que dar valor à beleza pode se levar a um complexo de inferioridade?
Porque a grande maioria das pessoas não tem a beleza. Em uma cultura que se valoriza excessivamente a beleza, ela condena à frustração e a um sentimento de inferioridade mais de 90% das mulheres, por conta do desejo masculino estar ligado ao visual. Se você diminui a chance de moços e moças e isso não era absolutamente relevante. A competição entre homens e mulheres não poderia ser maior que a de hoje.

Você afirma que se o mundo fosse mais liberal, teríamos mais bissexuais. Explique.
Seria de se esperar um aumento da bissexualidade, se vivêssemos num mundo mais liberal. Os meninos continuam a não se encostar uns nos outros, porque senão seriam gays para sempre. O preconceito contra a intimidade entre dois homens continua tão forte quanto no passado. O menino mais delicado e menos afeito aos esportes continua sendo mal visto pela família e até pela própria mãe. Com as meninas sempre foi diferente – elas sempre puderam brincar umas com as outras. Na minha adolescência, elas andavam de mãos dadas, algumas até se beijavam e não eram homossexuais.
Como você vê a exposição sexual na internet?
O sexo virtual vai substituir o casual. Isso porque o sexo casual já é virtual. Quando um homem sai com uma prostituta que o chama de bem e não um por nome, isso não é uma relação. A relação a dois implica ter mais intimidade. As feministas detestavam falar que mulher gosta de ser objeto do desejo. Na verdade, elas sempre adoraram isso. Hoje, elas vão à internet para serem desejadas. Uma das fantasias femininas é estar num clube de strip-tease e todos os homens estarem babando. Tirar a roupa na internet é levar essa realidade para o mundo virtual. Isso é parte do exibicionismo feminino.
Explique a seguinte frase de seu livro: “os cafajestes são a referência masculina e os que não são o invejam”.
É verdade, porque no sexo casual, no sexo do desejo, prevalecem os cafajestes. No sexo romântico, prevalece a excitação. Se eu estou casado há 20 anos com a mesma mulher, evidentemente não morro de desejo por ela. O desejo visual vai se desgastando no convívio, mas o prazer e a troca de carícias não se esgotam da mesma maneira. No sexo romântico, predomina a excitação. No amor, o sexo não é protagonista. Nesse mundo da conquista, o sexo é o protagonista. O cafajeste é o que tem mais cara de pau, fala mentiras, promete casamento e, com essa cara de pau, ele mexe com a vaidade feminina. As mulheres se sentem tão estimuladas que acabam cedendo. E os bobões que querem ser sinceros, aqueles que não mentem, se tornam irrelevantes. Mas isso também vai mudar, porque no mundo virtual, os cafajestes não se sobressaem.

Flavio Gihovate
 
O amor é infinito e a espera finita


Sei muito bem que minhas mãos não tocam e não alcançam ainda minha ansiedade.
É uma pressa desproporcional e desrespeitosa.
É um desespero que se debate num silêncio intransponível.
A rejeição  é feito aquela luz que os insetos se atraem e batem insistentemente até caírem exaustos.

Coleciono excessos no  temor infundado de que as memórias  possam escapar pelos anos que avançam.
E provoco ataques de toda ordem contra mim. No excesso, dinheiro e comida desperdiçados.
Não é um lamento. É uma despedida.

Não quero enigmas muito menos dificuldades.
O amor se rende. Ele não ignora, nem deixa dúvidas.
O amor é infinito, mas a espera é finita.
Não foi o tempo, mas a dor que se resignou.
Aproveita o gelo que você vai me dar e traga uma coca gelada 

  Ouvi um velhinho dizer:
 “Amei a mesma mulher durante 50 anos”.
Pensei  no quanto isso era ducaralho,
 até que ele disse:
 “Queria que ela soubesse disso.”
 As vezes as pessoas fazem jogo duro,
 porque precisam saber
 se os sentimentos do outro são reais.
 Pensei no quanto isso era fodido.
 Somos apenas caras,
somos estúpidos ás vezes,
 muitas vezes.
 Quantas vezes,
 quiz dizer:
"EU GOSTO DE VOCÊ”
 e não disse.
Não quero chegar aos 90 anos,
 morrer e pensar:
"eu podia ter tentado”
 Eu costumava ser mais feliz.
 Hoje tá tudo meio “tanto faz”
 Vejo homens chamando mulheres para saírem,
 e no último minuto desmarcarem.
 Apenas para serem
 difíceis,
 ou tanto faz.
 O maior crime do homem
 não é despertar o amor de uma mulher
E não amá-la,
 é fazê-la se depilar à toa.
 Eu tinha uma paquera,
 eu mandava mensagem,
 e ela demorava sempre 4 dias para responder.
 Imagina
 se eu fosse aquelas pessoas,
 que pensam
 que se demorar mais de 5 minutos para responder
 já começam a se arrepender
 de cada letra que escreveu.
 Esses dias,
 depois de sei lá quanto tempo,
 essa paquera mandou mensagem:
 “Estou com saudades”
 A pessoa diz sentir sua falta,
 mas não demonstra.
 Ela espera que você adivinhe
 com seus super poderes mentais,
 que ela precisa de você.
 Eu sabia
 que qualquer coisa que eu respondesse,
teria que esperar 4 dias para a resposta.
 Então respondi:
 “Aproveita o gelo que vai me dar e me traz uma coca gelada”
 Se você está cansado de joguinhos,
 de tanto faz,
 dessas regras bobas,
 faça como eu,
 demita-se.
 Sabe,
esqueça  essa teoria de não dar moral.
Se quer ligar,
liga.
Vai lá,
tente a sorte,
quebre a cara,
arrisque.
Sabe,
pensar duas vezes
é à distância entre os que sonham
E os que vivem.
Então,
viva.
Saí fora dessa bolha
felicidade não é mercadoria,
não é um remédio que se fabrica,
com fórmula errada ainda,
de indiferença,
cara feia,
e nariz empinado.
Não tem graça ter essa vida,
onde você tem que esconder
Seus sentimentos por que alguns,
falam que isso é o seu valor.
Muita idiotice.
Limitar-se já é um problema,
limitar o sentimento é o pior deles.
Perdemos a chance
de viver uma história
pelo simples fato de não falar.
Eu agora,
me apaixono por mulheres que,
além de gostarem de Pearl Jam,
aceleram meu coração.
Eu agora,
me apaixono por mulheres
diretas e honestas.
Que não fazem jogos,
fazem amor.
Quero conquistar uma mulher
sendo eu mesmo.
Sem estereótipos,
sem medo.
Eu agora,
passei a ver o mundo de outra maneira.
E não foi ele que mudou,
fui eu.
Diferença de ritmo sexual seria motivo para desistir de casar?
por Arlete Gavranic

"... tenho recebido no consultório um número muito grande de mulheres queixosas com relação a um ritmo de desejo sexual masculino..." Em muitos casos a diferença de ritmo sexual -- quando um dos parceiros sente mais ou menos vontade de fazer sexo do que o outro -- é percebida já no namoro.
Essa diferença pode ser percebida em viagens ou finais de semana. Em outros casos, essa diferença só é percebida quando passam a morar juntos.

Muitos casais que no período de namoro não têm encontros muito frequentes (diários ou várias vezes por semana) acabam tendo um desejo mais manifesto quando a possibilidade de maior intimidade ocorre.
O mais comum sempre foi encontrar homens com um desejo sexual mais frequente e as mulheres menos desejosas. Mas tenho recebido no consultório um número muito grande de mulheres queixosas com relação a um ritmo de desejo sexual masculino, tanto de namorados como de maridos.
Por que dessa diferença?
Para algumas pessoas isso pode acontecer em decorrência de períodos de estresse e acontecimentos desgastantes. Ou seja, a pessoa passou por uma etapa de vida que ocasionou uma diminuição da expressão de desejo. Para esses casos a terapêutica pode ser médica (se houve alteração hormonal) ou psicológica para poder auxiliar a recuperação do desejo sexual.
Mas para algumas pessoas esse ritmo de desejo sexual sempre foi diminuído ou de frequência pequena. Para alguns há desejo sexual uma, duas vezes, três vezes por semana ou mais e outros têm desejo num espaço de tempo maior.
Precisamos entender se essa pessoa com desejo diminuído, seja homem ou mulher, foi educada de maneira reprimida com relação à expressão do desejo, ou se essa pessoa nunca se atentou a dar vazão a seu desejo e sua consequente estimulação e demonstração do mesmo.
Quando se tem noção da expressão do desejo ter sido reprimido, um processo psicoterapêutico ajudará a entender e a se libertar de crenças (familiares, religiosas, morais) para minimizar essa repressão que inibe a manifestação da frequência desse desejo.
Se a pessoa não se atentou aos seus desejos, há a possibilidade de estimular e dar vazão a eles. Algumas técnicas de terapia sexual, como por exemplo, conscientização corporal e estimulação de pontos erógenos do corpo podem ajudar a estimular o desejo. Isso poderá trazer equilíbrio em relação à frequência das relações sexuais para ambos.
Mas se mesmo com terapia, essa diferença continuar sendo um fator de insatisfação, por exemplo, um quer sexo duas a três vezes por semana e outro quer quinzenalmente e o que tem menor ritmo não se compromete ou não apresenta atitudes para estimular esse desejo, ai há um ponto delicado a ser pensado.
Sexo é para muitos um aspecto importante da manifestação não só da libido, mas também de envolvimento afetivo. Para essas pessoas, conviver com essa diferença vai gerar frustrações frequentes que poderão desenvolver uma insatisfação sexual. Isso poderá comprometer o relacionamento afetivo e até ser um estimulo a possíveis envolvimentos extraconjugais.
Se essa diferença já foi tratada com o casal e continua a ser uma fonte de grande conflito para a relação, essa pessoa que vive essa insatisfação deve avaliar se dará conta de viver uma vida marital, pois o acúmulo de frustrações e as cobranças pela não frequência acabarão gerando desgastes que muitas pessoas não conseguem superar.
Pensar nessa questão sexual como parte integrante da vida a dois é necessário sim, pois essa intimidade reflete na intensidade do vínculo e na cumplicidade do casal.
Se for muito discrepante essa diferença, seria melhor avaliar e decidir antes que as mágoas se acumulem e danifiquem mais a vida dessas pessoas.



este artigo para um(a) amigo(a)


A violência não é uma fantasia - LYA LUFT

REVISTA VEJA


A violência nasce conosco. Faz parte da nossa bagagem psíquica, do nosso DNA, assim como a capacidade de cuidar, de ser solidário e pacífico. Somos esse novelo de dons. O equilíbrio ou desequilíbrio depende do ambiente familiar, educação, exemplos, tendência pessoal, circunstâncias concretas, algumas escolhas individuais. Vivemos numa época violenta. Temos medo de sair às ruas, temos medo de sair à noite, temos medo de ficar em casa sem grades, alarmes e câmeras, ou bons e treinados porteiros. As notícias da imprensa nos dão medo em geral. Não são medos fantasiosos: são reais. E, se não tivermos nenhum medo, estaremos sendo perigosamente alienados. A segurança, como tantas coisas, parece ter fugido ao controle de instituições e autoridades.

Nestes dias começamos a ter medo também dentro dos shoppings, onde, aliás, há mais tempo aqui e ali vêm ocorrendo furtos, às vezes assaltos, raramente noticiados. O que preocupa são movimentos adolescentes que reivindicam acesso aos shoppings para seus grupos em geral organizados na internet.

É natural e bom que grupos de jovens queiram se distrair: passear pelos corredores, alegres e divertidos, ir ao cinema, tomar um lanche, fazer compras. Porém correr, saltar pelas escadas rolantes, eventualmente assumir posturas agressivas ou provocadoras e bradar palavras de ordem não é engraçado. Derrubar crianças ou outros jovens, empurrar velhos e grávidas, não medindo consequência de suas atitudes, não é brincadeira. Shoppings são lugares fechados, com grande número de pessoas, e portanto podem facilmente virar perigosos túneis de pânico.


Juventude não é sinônimo de grossura e violência (nem de inocência e ingenuidade). Neste caso, os que perturbam são jovens mal-educados (a meninada endinheirada também não é sempre refinada...) ou revoltados. Culpa deles? Possivelmente da sociedade, que por um lado lhes aponta algumas vantagens materiais, por outro não lhes oferece boas escolas, com muito esporte também em fins de semana, nem locais públicos de prática esportiva com qualidade (esportistas famosas como as tenistas irmãs Williams, meninas pobres, começaram em quadras públicas americanas).

Parece que ainda não se sabe como agir: alguns jornalistas ou psicólogos e antropólogos de plantão, e gente de direitos humanos às vezes tão úteis, acham interessante e natural o novo fenômeno, recorrendo ao jargão tão gasto de que "as elites" se assustam por nada, ou "as elites não querem que os pobres se divirtam", e "os adultos não entendem a juventude". Pior: falam em preconceito racial ou social, palavrório vazio e inadequado, que instiga rancores. As elites, meus caros, não estão nos nossos shoppings; estão em seus iates e aviões pelo mundo.

No momento em que as manifestações violentas de junho estão aparentemente calmas (pois queimam-se ônibus e crianças, há permanentes protestos menores pelo Brasil), achar irrestritamente bonito ou engraçado um movimento juvenil é irresponsabilidade. E é bom lembrar que, com shoppings fechando ainda que por algumas horas, os empregados perdem bonificações, talvez o emprego.

As autoridades (afinal, quem são os responsáveis?) às vezes parecem recear uma postura mais firme e o exercício de autoridade: como pode ocorrer na família e na escola, onde reinam confusão e liberalismo negativo, queremos ser bonzinhos, para desamparo dessa meninada.

Todos devem poder se divertir, conviver. Mas cuidado: exatamente por serem jovens, os jovens podem virar massa de manobra. Os aproveitadores de variadas ideologias, ou simplesmente os anarquistas, os violentos, estão sempre à espreita: já começam a se insinuai- entre esses adolescentes, ou a organizar grupos de apoio a eles — certamente sem serem por eles convidados.

Bandeiras, faixas, punhos erguidos e cerrados e palavras de ordem não são divertimento, e nada têm a ver com juventude. Não precisamos de mais violência por aqui. É bom abrir os olhos e descobrir o que fazer enquanto é tempo.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014


A Solidão Amiga - Rubem Alves

“...sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem.”

“...na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A noite estava perdida.”

“Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma.”

“Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a que mais amo: ‘Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você.’”

“O estar juntos, frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos. Sartre chegou ao ponto de dizer que ‘o inferno é o outro.’”

“Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o seguinte: ‘As obras de arte são de uma solidão infinita.’ É na solidão que elas são geradas.”

“E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente descrita por Drummond: ‘...Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Distância, exílio e viagem transpareciam no seu sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira Cecília...’. Sim, lá estava ela delicadamente entre os outros, participando de um jogo de relações gregárias que a delicadeza a obrigava a jogar. Mas a verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar onde ela estava irremediavelmente sozinha.’”

“O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kiekeggard, um solitário que me faz companhia até hoje, observou que o início da infelicidade humana se encontra na comparação.”

“As caminhadas pelo deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar de mim mesmo. E aprendi a buscar as coisas que, para mim, solitário, faziam sentido.”

“Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.”


O Mal-Estar na Cultura - Sigmund Freud

“É impossível escapar à impressão de que os seres humanos geralmente empregam critérios equivocados, de que ambicionam poder, sucesso e riqueza para si mesmos e os admiram nos outros enquanto menosprezam os verdadeiros valores da vida.”

“Todo sofrimento é apenas sensação, existe apenas na medida em que o percebemos, e apenas o percebemos em consequência de certas disposições de nosso organismo.”

“Quem toma parte do delírio obviamente nunca o reconhece como tal.”

“Não há conselho que sirva para todos; cada um precisa experimentar por si próprio a maneira particular pela qual pode se tornar feliz. Os mais variados fatores farão valer seus direitos para lhe indicar o caminho de sua escolha. Trata-se de saber o quanto de satisfação real ele tem a esperar do mundo exterior, e até onde é levado a se tornar independente dele; por fim, também, de quanta força ele julga dispor para modificá-lo conforme seus desejos.”

“A religião prejudica esse jogo de escolha e adaptação ao impor a todos, do mesmo modo, o seu caminho para a obtenção da felicidade e para a proteção contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e desfigurar a imagem do mundo real de modo delirante, o que tem como pressuposto a intimidação da inteligência."

“Em circunstâncias favoráveis, quando foram suprimidas as forças psíquicas contrárias que usualmente inibem tal agressão, ela também se expressa de modo espontâneo e revela o homem como uma besta selvagem à qual é alheia a consideração pela própria espécie.”

“As paixões determinadas por impulsos são mais fortes do que os interesses racionais.”

Fugindo do Ninho - Richard Bach

“Há muito tempo minha verdade vem sendo refinada.”

“Para mim, religiões sistematizadas eram pontes oscilantes, pedaços de pau mal ajambrados que cederiam à primeira pressão, uma questão infantil revolvendo o mistério impossível: porque as religiões pendem para questões irrespondíveis? Não se sabe que o irrespondível não é resposta? Seguidamente, deparava-me com uma nova teologia e sempre me via diante do impasse: devo agarrar essa crença e fazer dela minha vida? Cada vez que esse impasse se impunha, colocava meu peso sobre a ponte, as tábuas tremiam e rangiam; então, todas de uma só vez, caíam diante de mim, como que espanadas, rolando abaixo, escapando de vista. Nesse ponto, agarrava-me ao mundo, agachando-me de volta à beirada abaixo da qual estava o abismo, grato por não sucumbir à queda. Que sabor teria entregar o coração a uma religião que garantia que o planeta se dissolveria em fogo quando chegasse o 31 de dezembro, e então acordar no Ano-Novo entregue ao canto dos pássaros? Constrangimento, este o sabor que teria.”

“Se quebrar alguns recordes físicos me traz tanto prazer, (...) se busco sempre a superação física, o que haveria de errado em fazer o mesmo em relação ao espirito?”

“– Gosto dos presentes.
– Desista dos aniversários, você pode se dar seus próprios presentes a cada dia do ano.”

“Claro que sou demente, Dickie, mas no bom sentido.”

“Quando não se acredita em aniversário, a ideia de envelhecer torna-se um tanto estrangeira. Você não cai em traumas ao fazer dezesseis ou trinta, ou o assustador cinquenta ou o mortificante centenário. Você passa a medir sua vida pelo que aprendeu, não por ficar contando calendários.”

“Na minha opinião, somos criaturas sem idade. O sentimento engraçado de que somos mais jovens ou mais velhos do que nosso corpo é o contraste entre o senso comum... nossa consciência deveria sentir-se tão velha quanto o nosso corpo... e a verdade, que diz que a consciência não tem idade. Nossa mente simplesmente não pode juntar as duas coisas por qualquer regra que seja do tempo-espaço. Então, em vez de tentar outras regras, ela simplesmente deixa de tentar. Sempre que sentimos que não temos a idade correspondente aos nossos números, dizemos ‘estranha sensação!’ e mudamos de assunto.”

“Congelei de medo... tinha de fazer isso, não importa o que achasse correto para mim? Crescer é isto, ter de fazer o que as outras pessoas fazem? Não gosto do que está acontecendo aqui. Como posso sair dessa? Socorro! Como resposta, houve uma explosão no fundo da minha mente, portas arrancadas dos gonzos, uma força lívida arrebentando, agitando. Este idiota está querendo lhe dizer o que você deve ou não fazer? Que história é essa de ‘você tem que fazer’? Você não tem que fazer nada que não queira. Quem é este palhaço para mandar você fazer o que ele quer? Bati com o copo na mesa, a cerveja saltando da borda.
– Eu não tenho que beber nada, Mike! Ninguém me diz o que fazer!”

“Uma droga para tudo é maluquice. Legal ou não, prescrita ou não, passada por cima ou por baixo do balcão, comprada para uso nas esquinas das ruas – cada pílula nos separa do conhecimento de nossa própria compleição e nos distancia do aprendizado da verdade. É melhor nos tratarmos sem recorrer a nenhuma droga, seja qual for a droga e a situação. É criminoso, imaginei, para mim, apoiar uma multidão que trata o corpo como uma máquina em vez de notar as manifestações psicológicas, que fracassam em ver além da primeira tela das aparências.”

“– Voar ainda é uma fantasia para muitos de nós – expliquei. – Quantas fantasias incluem doença? Viva bastante aquilo que você sempre sonhou em fazer e não sobra espaço para as doenças.

“Tudo o que aprendi, Dickie, daquele momento em diante, comprovou o poder do indivíduo para mudar seu destino, o poder de escolha de cada um. (...) nunca espere alguém para mostrar-lhe o caminho ou fazê-lo feliz.”

“– É o preço a pagar – avisou o padre. – Invente a sua teologia e você será diferente de todos os outros.
– Isso não é preço, é uma recompensa.”

“– Imagine que existe um Deus Todo-Poderoso que observe os mortais e seus problemas na Terra.
Ele concordou.
– Então, Deus deve ser responsável por todas as catástrofes, tragédias, terror e morte que flagelam a humanidade.
Dickie ergueu a mão:
– Ele não é responsável só porque vê nossos problemas.
– Pense bem. Porque Ele é Todo-Poderoso. Quer dizer, Ele tem o poder de impedir as coisas ruins, se Ele quiser. Mas Ele escolhe não impedir. Ele é a causa do mal, por permitir que ele exista.
Ele avaliou o raciocínio.
– Talvez... – disse hexitante.
– Por definição, porque os inocentes continuam a sofrer e morrer, um Deus que tudo pode não só é indiferente como infinitamente cruel.
Dickie levantou a mão novamente, mais pedindo tempo para pensar do que para fazer uma pergunta.
– Talvez...
– Você não tem certeza – eu disse.
– Parece estranho, mas não consigo ver o que está errado.
– Eu também não. Essa ideia está mudando o mundo para você, do mesmo modo que mudou para mim... um Deus mau e cruel?
– Continue – ele pediu.
– Seguinte: imagine um Deus Todo-Poderoso que olhe os mortais e conheça seus problemas na Terra.
– Assim é melhor.
Concordei.
– Então esse Deus deve ver com tristeza os inocentes sendo oprimidos e mortos pela maldade, vezes sem fim; assassinados aos milhões enquanto imploram em vão aos céus por socorro, através dos séculos.
Ele ergueu o braço.
– Agora você vai dizer: os inocentes sofrem e morrem, então o nosso Deus de bondade não tem poder para nos ajudar.
– Exatamente! Diga quando estiver pronto para uma pergunta.
Durante um momento, ele pensou sobre o que eu tinha dito. Então cedeu:
– Ok, estou pronto.
– Qual é o Deus real, Dickie? O cruel ou o impotente?”

“Qualquer um pode matar a minha aparência. Ninguém pode tirar a minha vida.”

“O meu corpo não é mais o eu real do que um número no papel é o número real.

"– Você é mestre de sua vida? – perguntou ele.
– Claro que sou! Eu, você e todos os outros. Mas nos esquecemos disso.
– Como eles fazem isso?
– Como quem faz o quê?
– Como os mestres mudam sua vida quando querem?
Sorri a esta pergunta.
– Com armas poderosas.
– O quê?
– Outra diferença entre mestres e vítimas é que as vítimas não descobriram as armas poderosas e os mestres as usam o tempo todo.
– Furadeiras elétricas? Serras circulares? – Ele parecia um náufrago em busca de socorro. Um bom professor o teria deixado descobrir a resposta sozinho, mas eu falo demais para um professor.
– Nada disso. 'Escolha'. A lâmina encantada com um fio que modela as existências. Se ainda assim temos medo de escolher outra coisa que não o que já temos, o que adianta escolher?”

"Afastar-se da segurança não quer dizer correr riscos inúteis.”

“Lembre-se de que este mundo não é a realidade. É o playground das aparências, no qual praticamos a arte de superar o Parece Ser com o nosso conhecimento do É. O Princípio das Coincidências é uma ferramenta poderosa que promete, nesse playground, transportar-nos através do muro.”

“Os semelhantes se atraem. Isso vai surpreendê-lo enquanto viver. Escolha um amor e trabalhe para que ele seja verdadeiro, e de algum modo vai acontecer, algo imprevisto vai juntar os semelhantes, vai libertá-lo e colocá-lo no caminho de seu próximo muro.”

“Chamamos este mundo de Terra, mas o nome verdadeiro é Mudança.”

“– O mundo não é uma esfera, Dickie, é uma enorme pirâmide flutuante. Na sua base está a mais baixa forma de vida que se possa imaginar, odiosa, cheia de vícios e praticando o mal por puro prazer, destituída de compaixão, um pouco acima da consciência, tão selvagem que se autodestrói assim que nasce. Existe espaço para este tipo de consciência, muito espaço, bem aqui no nosso terceiro planeta triangular.
– O que está no topo da pirâmide?
– Uma consciência tão refinada que quase só reconhece a luz. Seres que vivem apenas para seus amores, para os mais altos princípios...”

“– Paz é melhor que guerra.
– Aqueles no topo da pirâmide concordariam. A paz os faria mais felizes.
– E os da base?
– ...amam a batalha! Há sempre uma razão para lutar. Com sorte, é uma causa quente: esta guerra nós fazemos por Deus, esta é para salvar nossa pátria, esta outra para limpar a Raça, para expandir o Império, para obter lata e tungstênio. Lutamos porque paga-se bem, porque é mais excitante matar do que construir vidas, porque guerra evita trabalhar para viver, porque todos estão lutando, porque vai provar que sou um homem, porque gosto de matar.
– Terrível.
– Não é terrível, é previsível. Quando um planeta abriga um espectro tão amplo de mentalidades, espera-se um monte de conflitos.”

“Se eu puder lhe dizer uma única coisa sobre a vida, eu diria: nunca esqueça que é um jogo.”

“Nossa sorte é não termos recordação de outras vidas, pensei. Imobilizados pela memória, não poderíamos prosseguir com esta.”

“A mais leve sugestão de mudança é uma ameaça de morte a alguns status quo.”

"Evite problemas e você nunca será um dos que superam."
 
 
 
 
 

Eu e Outras Poesias - Augusto dos Anjos

“Desde então para cá fiquei sombrio
Um penetrante e corrosivo frio
Anestesiou-me a sensibilidade
E a grandes golpes arrancou raízes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!”

“Meu coração, como um cristal, se quebre,
O termômetro negue minha febre,
Torne-se gelo o sangue que me abrasa,
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruínas duma casa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!”

“Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a alegria é uma doença
E a tristeza é minha única saúde.”

"Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes
Tudo que sentes. A infelicidade
Parece às vezes com a felicidade
E os infelizes mostram ser felizes!"

"(...)
Ah! Se me ouvisses falando!
(E eu sei que às dores resiste)
Dir-te-ia coisas tão tristes
Que acabarias chorando.

Que mal o amor tem me feito!
Duvidas?! Pois, se duvidas,
Vem cá, olha estas feridas
Que o amor abriu em meu peito.

Passo longos dias, a esmo...
Não me queixo mais da sorte
Nem tenho medo da Morte
Que eu tenho a Morte em mim mesmo!
(...)"

"Homem, carne sem luz, criatura cega,
Realidade geográfica infeliz
O Universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz!

O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o ômega
Amarguram-te. Hebdômadas hostis
Passam... Teu coração te desagrega,
Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!

Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila,
Excrescência de terra singular.

Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: - o de chorar!"
A Amizade - Lya Luft
“Um amigo é alguém com quem estivemos desde sempre. Pela primeira vez, estando com alguém, não sentia necessidade de falar. Bastava a alegria de estarem juntos, um ao lado do outro.”

“Se o silêncio entre vocês dois lhe causa ansiedade, se quando o assunto foge você se põe a procurar palavras para encher o vazio e manter a conversa animada, então a pessoa com quem você está não é amiga (...) Quando a pessoa não é amiga, terminado o alegre e animado programa, vem o silêncio e o vazio – que são insuportáveis. Nesse momento o outro se transforma num incomôdo que entulha o espaço e cuja despedida se espera com ansiedade. Com o amigo é diferente. Não é preciso falar, basta a alegria de estarem juntos, um ao lado do outro. Amigo é alguém cuja simples presença traz alegria independentemente do que se faça ou diga. A amizade anda por caminhos que não passam pelos programas.”

Eu não sei na verdade quem sou

Eu não sei na verdade quem eu sou
já tentei calcular o meu valor
Mas sempre encontro um sorriso e o meu paraíso é onde estou
Por que a gente é desse jeito?
criando conceito pra tudo que restou

Meninas... são bruxas e fadas
Palhaço é um homem todo pintado de piadas
Céu azul é o telhado do mundo inteiro
Sonho é uma coisa que fica dentro do meu travesseiro

Eu não sei na verdade quem eu sou
Já tentei calcular o meu valor
Mas sempre encontro um sorriso... e o meu paraíso é onde estou
Eu não sei... na verdade quem eu sou

Perguntar... da onde veio a vida
por onde entrei... deve haver uma saída
e tudo fica sustentado... pela fé
Na verdade ninguém... sabe o que é

Velhinhos são crianças nascidas faz tempo
com água e farinha colo figurinha e foto em documento
Escola! É onde a gente aprende palavrão...
Tambor no meu peito faz o batuque do meu coração

Eu não sei na verdade quem eu sou
Já tentei calcular o meu valor
Mas sempre encontro sorriso... e o meu paraíso é onde estou
Eu não sei... na verdade quem eu sou

Percebi que a cada minuto
Tem um olho chorando de alegria e outro chorando de luto
Tem louco pulando o muro, tem corpo pegando doença
Tem gente trepando no escuro, tem gente sentido ausência

Meninas... são bruxas e fadas
Palhaço é um homem todo pintado de piadas
Céu azul é o telhado do mundo inteiro
Sonho é uma coisa que fica dentro do meu travesseiro.
Fernando Anitelli
Cartas Perto do Coração - Clarice Lispector, Fernando Sabino
“Passo os dias procurando enganar minha angústia e procurando não fazer horror a mim mesma.”

“Mas não sei aprender ainda a desistir e tenho mesmo medo de desistir e me entregar porque não sei o que virá daí. Até agora eu mesma me ergui sempre mas é um esforço muito grande e naturalmente estou bem cansada. Esta vida íntima que chega a um ponto de não ter nenhum sinal exterior, termina por me tirar a direção e o sentido das coisas. Mas parece que cheguei a um ponto de onde não posso mais sair.”
“A solidão de que sempre precisei é ao mesmo tempo inteiramente insuportável.”

“A verdade é que estamos sozinhos, cada um consigo mesmo.”

“Talvez porque agora você já não esteja sofrendo muito, mas sofrendo bem: é uma diferença bem importante. (...) A gente sofre muito: o que é preciso é sofrer bem, com discernimento, com classe, com serenidade de quem já é iniciado no sofrimento. Não para tirar dele uma compensação, mas um reflexo.”

Brincando com luz

 - FERREIRA GULLAR
FOLHA DE SP - 26/01

Ver arte hoje tem um preço, que tanto pode ser um barulho ensurdecedor como sentir-se ameaçado


Os movimentos de vanguarda do começo do século 20, ao romperem os vínculos que tradicionalmente, na arte ocidental, ligavam a linguagem artística à representação da realidade, abriram caminho para as mais diversas experiências no campo da expressão artística.

Alguns quadros cubistas são exemplos notórios disso: ao colar, na tela, recortes de jornal em vez de representá-los pictoricamente, fizeram dela um espaço expressivo que tudo aceitava, desde papéis colados até areia, arame, barbante ou o que fosse.

Estava aberto o caminho para toda e qualquer maneira de criar a obra de arte, fora de todo princípio estético a priori e de qualquer linguagem existente. O urinol de Marcel Duchamp é exemplo marcante dessa ruptura e de suas consequências futuras. Ele mesmo é o autor da frase que define a nova situação: "Será arte tudo o que eu disser que é arte".

Essa é a manifestação mais radical daquele momento de questionamento das linguagens estéticas consagradas. Mas foram feitas outras experiências, especialmente pelos dadaístas, sem o mesmo radicalismo de Duchamp.

Dentre essas novas tentativas estão o "Merzbau", de Kurt Schwitters, e o Clavilux, de Thomas Wilfred. São experiências muito diversas, pois, enquanto Schwitters montava a sua obra com o que trazia da rua e acrescentava a ela, Wilfred construiu um piano que em vez de sons produzia formas coloridas numa tela em frente. Ele foi o precursor da arte que usa como linguagem a cor-luz em movimento.

É, portanto, no Clavilux, que está a origem das obras que Julio Le Parc expõe atualmente na Casa Daros, no Rio.

A primeira vez que vi obras de Le Parc foi em começos da década de 1960 e eram muito diferentes destas que hoje expõe.

Aquelas eram telas com formas abstratas pintadas e outras recortadas em placas coloridas que se moviam. Confesso que não me causaram maior impressão, entre outras razões pelo fato de que o movimento das formas se repetia seguidamente.

Aliás, esse é o problema que enfrenta quem tenta introduzir o movimento real na linguagem pictórica. Foi enfrentado por Abraham Palatnik quando criou seus aparelhos cinecromáticos e por Thomas Wilfred com seu Clavilux. Está presente em alguns dos trabalhos mostrados agora por Le Parc, muito embora em alguns deles isso não ocorra. Mas não é esse o principal problema, uma vez que essa exposição do artista argentino compreende mais de dez salas totalmente às escuras.

Ao entrar na exposição, muito embora tenha sido avisado pela funcionária, senti-me totalmente perdido na treva de uma sala de que não vi as paredes e, por isso, não sabia se ia esbarrar em alguma delas ou tropeçar em algum degrau. Mantive-me parado, tenso, sem saber o que fazer. Percebi outras pessoas a meu redor mas tampouco as via. Depois dei alguns passos e pude vislumbrar, adiante, numa parede, um fervilhar de luzes. Tateando, passo a passo, fui me deslocando em direção àquelas luzes, já mais confiante.

Mas, o que fazer? Ver arte hoje tem um preço, que tanto pode ser um barulho ensurdecedor como sentir-se ameaçado ou perdido.

Nesse caso, tem sentido estarem as salas às escuras, uma vez que os trabalhos expostos são basicamente projeções luminosas. Não resta dúvida de que cada uma delas resulta das possibilidades de criar efeitos luminosos muitas vezes surpreendentes.

Outras vezes, porém, isso não ocorre; a própria presença dos equipamentos usados para provocar aqueles efeitos já retira deles o mistério que deveria envolver a relação entre a obra e o espectador.

Isso à parte, percebo que quase nenhuma daquelas obras suscita no espectador maior emoção. Antes, provoca o prazer próprio ao entretenimento, o que não desmerece a competência com que são realizadas. Le Parc consegue o resultado oposto ao das obras de Wilfred, em que o movimento das formas luminosas, lento e denso, leva-nos a um estado de descoberta e reflexão.

Saí da exposição de Le Parc como se nada de importante houvesse visto. São trabalhos elaborados e inventivos, mas não chegam a ser arte maior, no sentido pleno da palavra.
A Copa da maioria - EDITORIAL ZERO HORA
ZERO HORA - 27/01

Ganha destaque no país um movimento de protestos organizado pelas redes sociais que usa como grito de guerra uma frase ameaçadora: “Não vai ter Copa!”. O coro, entoado por manifestantes que se reuniram em várias capitais no último sábado, poderia ser encarado como uma simples bravata de ativistas inconsequentes. Mas não: está sendo levando a sério pelo governo, pelas autoridades de segurança e por todos os brasileiros conscientes do compromisso assumido pelo Brasil quando se candidatou à organização do Campeonato Mundial de Futebol da Fifa de 2014.
É legítimo que as pessoas cobrem rigor e transparência nos gastos com as obras da Copa, especialmente naqueles que envolvem recursos públicos. Da mesma maneira, devem ser consideradas perfeitamente democráticas as manifestações contrárias ao evento esportivo, muitas delas geradas por pessoas e organizações sociais que reclamam investimentos em áreas essenciais como saúde e educação. O que não parece adequado nem patriótico é o uso do sentimento anticopa para o atingimento de interesses subalternos. Basta um olhar atento sobre as manifestações para se perceber a presença de militantes políticos extremistas, tanto à direita quanto à esquerda, querendo ver o circo pegar fogo. É nesse jogo que os manifestantes bem-intencionados não devem entrar.
A Copa já não é mais apenas um compromisso dos governantes que estão no poder, como reafirmou a presidente Dilma Rousseff na última sexta-feira, ao se encontrar em Zurique com o presidente da Fifa, Joseph Blatter. O Mundial passou a ser uma responsabilidade de todos os brasileiros. Não há mais como voltar atrás. E seria mesmo uma insensatez interromper tudo o que está sendo feito para o grande evento esportivo, incluindo-se aí obras de infraestrutura em diversas cidades.
Vai ter Copa, sim! O Brasil não pode passar por um vexame histórico diante da comunidade internacional, principalmente neste momento em que busca investimentos externos para retomar o desenvolvimento econômico. Vai ter Copa, também, porque o povo brasileiro ama futebol e apoia majoritariamente a realização do evento. Vai ter Copa porque suspender a competição agora, além de causar prejuízos irreparáveis ao país, seria uma rendição à atitude fascista de grupos que tentam impor suas visões com gritos e ameaças.
O Brasil vive uma democracia e todos devem ter liberdade para se manifestar. Mas o limite para tais manifestações é o respeito a quem pensa diferente _ e uma maioria, até prova em contrário, quer, aceita ou pelo menos se mantém indiferente em realização ao Mundial

Palavras e segurança - EDITORIAL CORREIO BRAZILIENSE

CORREIO BRAZILIENSE - 27/01
"De boas intenções o inferno está cheio", diz a sabedoria popular. No Brasil, o dito exige adaptação. "De palavras", diria o texto com ajustes, "o cidadão está cheio". Expressam-se, aí, duas caraterísticas que marcam os governantes. Uma: a paixão incontrolada pelo discurso. Fala-se muito. Faz-se pouco. A outra: a crença no poder mágico da língua. Com fé inabalável na força da palavra, jorram-se promessas como se, sozinhas, elas fossem capazes de resolver problemas e responder a desafios.
O manual de repressão padrão Fifa confirma a tendência inelutável de acreditar na potência sobrenatural da falação. Trata-se de cartilha de procedimentos a ser seguidos durante grandes manifestações e a Copa do Mundo. Destinado à PM, o texto autoriza o uso de armas não letais e cria centros de comando distantes das áreas de conflito. Em casos de transgressão à lei, a polícia tem de identificar a responsabilidade individual do infrator. Hoje, prende-se coletivamente antes e pergunta-se depois.

Não é sem motivo a preocupação com a segurança pública. A escalada da violência, sobretudo nas grandes cidades, tem afetado a rotina dos cidadãos - obrigados a se proteger atrás de grades e ameaçados no direito de ir e vir. A internet promove fenômeno novo. Capaz de mobilizar grandes massas num tocar de teclas, o poder da rede mundial surpreendeu as autoridades em junho passado ao convocar o povo a manifestar a contrariedade em ruas e avenidas.

Os rolezinhos, acontecimentos mais recentes concentrados em shopping centers, confirmam a necessidade de forças policiais treinadas - aptas a manter a lei e a ordem com técnica e civilidade. Polícia não se qualifica com cartilhas, mas com estudo e treinamento. A segurança pública figura no rol das especialidades com alto grau de sofisticação. Tecnologia e inteligência devem andar de mãos dadas para fazer frente aos desafios contemporâneos, bem mais refinados que os do passado.

Estão na memória dos brasileiros discursos e entrevistas das autoridades sempre que ocorre uma grande tragédia. Os responsáveis pelo setor apresentam planos, fazem promessas e juram que, dali para a frente, a realidade será outra. Apagada a emoção, porém, fica tudo como está. A novela se repete quando exigida por outra comoção. E assim sucessivamente.

Agora, porém, a situação se agrava a ritmo de internet. Além das manifestações que tomam ruas e shoppings, a polícia tem de estar preparada para enfrentar o crime organizado. Como o adjetivo denuncia, a bandidagem saiu na frente em estratégias, inteligência e investimentos em inovação. Palavras, portanto, não são suficientes para mudar paradigmas. Sem ação efetiva, manuais e cartilhas servem para inglês ver. Nem se pode dizer que as frases ali contidas entrarão por um ouvido e sairão por outro. Elas nem sequer entrarão.

domingo, janeiro 26, 2014

Realidade e percepção - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 26/01

Quando se diz que uma imagem vale mais do que mil palavras, logo pensamos em cenas e fotografias que não carecem de explicação: a força de sua mensagem dispensa legendas. Mas imagem não é apenas algo que se enxerga concretamente.

Quando vi a foto do caixão de Ronald Biggs coberto pela nossa bandeira, sabia que aquilo significava apenas uma homenagem do filho brasileiro que o ladrão inglês teve, mas, subliminarmente, a imagem também fazia uma associação indigesta entre o banditismo e as cores verde e amarelo. Essa imagem negativa que temos do nosso país não é gratuita. Por maior que seja a quantidade de brasileiros honestos, incluindo até alguns políticos, não adianta: o Brasil tem um histórico de corrupção e violência que induz a essa percepção.

Percepção é algo que se constrói dia após dia, fato após fato, e que uma vez consagrada, é difícil mudar. Mesmo que todos os trens da Inglaterra partam e cheguem com atraso nos próximos meses, será preciso anos para desfazer a imagem que aquele país tem de pontual. O contrário também acontece. Ronald Biggs, depois que fugiu para o Brasil, não roubava mais nem no troco, era apenas um aventureiro que se transformou em uma folclórica subcelebridade. O episódio do assalto ao trem pagador, cinco décadas antes, foi deixado de lado em prol da construção de uma imagem de anti-herói, e ele acabou sendo enterrado com cobertura da imprensa.

Poucas coisas são tão fortes quanto a imagem que a gente cria. E como todos gostam de saber com quem estão lidando para evitar surpresas, essa imagem vira referência e pode agir a nosso favor e também contra - preconceitos vêm daí.

Nem todo alemão é sisudo, nem todo baiano é preguiçoso, nem todo gaúcho é machista, mas essa é a “foto” que guardamos deles em nossos porta-retratos mentais. Estereótipos de grupo. Individualmente acontece a mesma coisa. A sua vida passa como se estivesse numa esteira de linha de produção, até que um dia você ganha um rótulo – que não veio do nada, você de certa forma colaborou para ser etiquetado como um fofoqueiro, um bebum, um mulherengo.

E também colaborou para ser reconhecido como um cara focado, um homem responsável, um sujeito que cumpre o que promete. Você pode mudar? Pode. Para melhor e para pior. A vida é longa. Angelina Jolie passou de bad girl a cidadã ativista e de família - adotou crianças, visitou países assolados pela fome, a nossos olhos virou outra pessoa.

Mas, para comuns mortais, é bem mais penoso reverter a própria imagem. A imprensa não cobre.

Rótulos, mesmo os bons, são limitadores. O ideal seria que pudessem esperar qualquer coisa de nós, já que somos mesmo capazes de surpreender. Mas o mundo se apega às certezas, não às dúvidas. Então, tenha em mente que tudo o que você faz (e principalmente o que você repete) ficará arquivado na memória daqueles com quem convive, e será um trabalhão desfazer essa imagem. Não que seja impossível, mas vai exigir mais do que mil palavras.


Mendigo do amor - FABRÍCIO CARPINEJAR

ZERO HORA - 26/01

Até que ponto é possível amar sem ser amado?

Quando amamos platonicamente, o amor pode durar muito tempo. Pois não tem ninguém para estragar nossa idealização. Não há convivência para nos desafiar. É uma paixão estanque, feita de sonho e névoa. É uma vontade desligada da realidade. Temos a expectativa intacta, longe de contratempos. Acordamos e dormimos com o mesmo sentimento, longe de interrupção em nossa fantasia.

Mas quando amamos dentro de um casamento e quem nos acompanha não retribui o amor? Quanto tempo dura? Quanto tempo você suporta a secura, o desaforo, a grosseria? Quantos meses, se cada dia é um ano?

Nem estou falando de falta de sexo, mas a falta de beijo, de abraço, da telepatia rumorosa, do colo, de perceber seus cabelos sendo penteados pelas mãos, de ver seu rosto encarado de forma única e brilhante. Nem estou falando da falta de aventura, mas do conforto protetor, da cumplicidade, do afago que é viver com a certeza de que é admirado. Nem estou falando da falta de viagens, mas do mínimo da rotina apaixonada, ser cuidado mesmo quando está distraído. Não estou falando de arroubos e arrebatamentos, mas da vontade boa de morder seus lábios levemente quando suspira e de esperar o final de semana como um feriado.

Quanto tempo dura o amor sem retorno, sem reconhecimento?

Talvez pouco, quase nada. Quem não se sente amado não é capaz de amar. Não é problema de carência, é questão de tortura.

Extravia-se a cintilação dos olhos. Ocorre um bloqueio, uma desesperança, uma resignação violenta. É como dançar valsa sozinho, é como dançar tango sozinho. É abraçar pateticamente o invisível e não ter o outro corpo para garantir seu equilíbrio.

Você se verá um mendigo em sua própria casa, diminuído, triste, desvalorizado, esmolando ternura e atenção. Aquilo que antes parecia natural – a doação, a entrega, a alegria de falar e de se descobrir – será raro e inacessível. Todo o corredor torna-se pedágio da hostilidade. Passará a evitar os cômodos para não brigar, passará a evitar certos horários para se encontrar com sua esposa ou marido, passará a prolongar os períodos na rua, passará apenas a passar. Combaterá as discussões e gritarias anulando sua personalidade. Despovoará a sua herança, assumirá o condomínio do deslugar. Comerá de pé para evitar o silêncio insuportável entre os dois.

Quer um maior mendigo do que aquele que dorme no sofá em sua residência? Com um cobertorzinho emprestado e com a claridade das janelas violentando os segredos?

Por ausência de gentileza, perdemos romances. O que todos desejam é alguém que diga: não vou desperdiçar a chance de lhe amar. Alguém que não canse das promessas, que não sucumba ao egoísmo do pensamento, que tenha mais necessidade do que razão.

A gentileza é tão fácil. É fazer uma comida de surpresa, é convidar a um cinema de imprevisto, é pedir uma conversa séria para apenas se declarar, é comprar uma lembrancinha, é chamar para um banho junto, é oferecer massagem nos pés, é perguntar se está bem e se precisa de alguma coisa, é tentar diminuir a preocupação do outro com frases de incentivo.

Quando o amor para de um dos lados, o relógio intelectual morre. Não se vive desprovido de gentileza. A gentileza é o amor em movimento
Amor e ódio à classe média - GUSTAVO PATU
FOLHA DE SP - 27/01

BRASÍLIA - "Eu quero que todos sejam classe média. Porque o que a classe média tem de benefícios, de casa, de educação, de saúde, de emprego, de salário, de poder almoçar num restaurante uma vez por mês, de poder tomar uma cervejinha no final do expediente... Todo mundo é filho de Deus e todo mundo tem direito às coisas boas deste país."

Assim falava Lula na campanha de 1989, quando sua barba preta e sua promessa de socialismo democrático ainda metiam medo --e não apenas em quem podia almoçar fora de casa mais de uma vez por mês.

Quase 25 anos depois, a expansão da classe média é o que de melhor a administração petista tem para mostrar ao mundo rico, como neste mais recente Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça. Pelas contas oficiais, dois terços dos brasileiros já estão na classe média; segundo o Itaú, serão três quartos até 2016.

É claro que sempre haverá muito a questionar nos critérios para demarcar quem é pobre, rico ou remediado. As estatísticas do governo encaixam na classe média uma mãe solteira de um filho, trabalhando como empregada doméstica por um salário mínimo. A grande maioria dos considerados de classe alta certamente se considera classe média.

No debate de Davos, segundo o relato de Clóvis Rossi, da Folha, o ministro Marcelo Neri, de Assuntos Estratégicos, brincou com uma definição americana segundo a qual classe média é quem possui dois cachorros, dois carros e uma piscina.

Historicamente, a turma da cervejinha e da piscina sempre foi uma pedra no sapato do pensamento de esquerda. Marx descreveu a classe média como reacionária e fadada à extinção num mundo dividido entre exploradores e explorados.

"Eu odeio a classe média", como disse sem rodeios a filósofa petista Marilena Chaui. Contrariando a profecia marxista, os pequenos burgueses se expandem e levam o governo ao centro e Dilma Rousseff à Suíça.
Disco ocupado - RUY CASTRO
FOLHA DE SP - 27/01

RIO DE JANEIRO - Na próxima vez que você esquecer o nome do seu neto, não tiver certeza se já tomou banho ou não se lembrar por que saiu de casa com um envelope endereçado e fechado contendo uma carta, não se desespere. Pode não ser --ainda-- a chegada do velho Al (Al Zheimer, conhece?) ou de alguma outra forma de demência senil. Estudos recentes de cientistas alemães indicam o contrário: quem mais esquece é o homem que sabe demais.

Segundo eles, o cérebro do idoso, se não reage de pronto a certas solicitações, não é porque esteja com as porcas e arruelas enferrujadas ou sendo apagado aos poucos como um quadro-negro. É porque levou décadas armazenando informações. E, por ele conter gigantescos blocos de informações, mais complexa e lenta será a busca entre elas de informações novas. É como o disco rígido do computador que, por estar "cheio", demora mais para processar os dados.

Essa não é uma imagem, mas um diagnóstico. Os alemães simularam em computador o desempenho de bancos de dados maiores e menores --esses últimos, equivalentes ao cérebro de um jovem adulto-- e constataram que a diferença não estava no desgaste do material, aliás inexistente, e sim na carga de dados.

Gostei dessa descoberta, mas eu próprio já havia chegado a ela sem precisar de simulações. Há tempos venho percebendo que minha lentidão para gravar certas informações se dá porque o espaço na cabeça está ocupado com detalhes da trama de romances como "Scaramouche", "O Pimpinela Escarlate" e "Elzira, a Morta-Virgem", gibis de Mandrake, Dick Tracy e Brucutu, cenas de beijo de filmes de Marisa Allasio, frases do Millôr, tratados de fenomenologia de Husserl e letras de marchinhas de Carnaval como "Aurora", "Saçaricando" e "Tem Nego Bebo Aí".

Não que as ditas informações novas merecessem ocupar o lugar dessas maravilhas.

Euzinho - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 27/01

Tradição nada tem a ver com se pintar como aborígenes pra defender reservas indígenas


A modernidade é uma declaração de guerra à ideia de tradição. Mas nós, modernos, continuamos a não perceber isso, e o resultado é que suspiramos como bobos diante do que pensamos ser uma tradição, apesar de detestarmos qualquer sinal verdadeiro de tradição.

Procuramos tradições em workshops xamânicos, espaços budistas nas Perdizes, livros baratos sobre como viviam os druidas.

São muitas as definições de tradição. Não vou dar mais uma, mas sim elencar atitudes que estão muito mais próximas do que é uma tradição do que cursos de cabala nos Jardins. Nada tenho contra estudar culturas antigas, apenas julgo um equívoco confundir a ideia de tradição com modas de uma espiritualidade de consumo.

Não existe xamã na Vila Madalena. A cabala não vai salvar meu casamento. Meditação não fará de mim uma pessoa melhor no trabalho. Imitar a alimentação de monges tibetanos não aliviará minha inveja. Frequentar cachoeiras indígenas não fará de mim uma pessoa menos consumista. Tatuar palavras védicas não me impedirá de fazer qualquer negócio pra viver mais. Visitar templos no Vietnã não fará de mim alguém menos dependente das redes sociais. Desejar isso fará de mim apenas ridículo.

Uma tradição, pra começo de conversa, nada tem a ver com "escolha". Não se escolhe uma tradição. Neste sentido, muitos rabinos têm razão em desconfiar de conversos ao judaísmo por opção. Uma tradição funciona sempre contra sua vontade, à revelia de sua consciência, submetendo-a ao imperativo que escapa à razão mais imediata. A única forma de tradição a que a maioria de nós ainda tem acesso é a língua materna.

Colocar os filhos pra dormir todos os dias é mais próximo do que é uma tradição do que estudar velhos símbolos indígenas ou brincar com eles em pousadas nas chapadas. Não poder sair à noite porque um dos filhos tem febre é tradição. Velá-lo durante a noite é tradição. Morrer de medo durante esta noite é tradição. Nada menos tradicional do que uma mulher sem filhos. Ela até pode aprender capoeira, mas será apenas iludida, se sua intenção for experimentar a tradição afro.

Nada tenho contra mulheres não terem filhos, digo apenas, de forma modesta, o que é uma tradição.

Homens que sustentam sua mulher e filhos são tradicionais, mesmo em tempos como os nossos em que todo mundo mente sobre isso. Levar seus velhos ao hospital, enterrá-los, em agonia ou com absoluta indiferença, é tradição. Andar pela casa à noite pra ver se tem algum ladrão, enquanto sua mulher e filhos ficam protegidos no quarto, é tradição. Ser obrigado a ser corajoso é uma tradição, maldita, mas é.

Pular sete ondas numa Copacabana lotada nada tem de tradicional, é apenas chato. Tradição é ir pra guerra se não sua mulher achará você covarde. Lavar louça, fazer o jantar, lavar banheiros, morrer de medo diante do médico. Falar disso pra quem vive uma situação semelhante a você. Ter que passar nas provas na escola. Ter que ser melhor do que os colegas. Sangrar todo mês.

Tradição é pagar contas, enfrentar finais de semana vazios e não desistir. É sonhar com um futuro que nunca chega. Engravidar a namorada. Ter ciúmes. Odiar Deus porque somos mortais. Ter inveja da amiga mais bonita, do amigo mais forte e inteligente. É cuidar dos netos. É educar os mais jovens e não deixar que eles acreditem nas bobagens que inventam.

Tradição funciona como hábitos que se impõem com a força de um vulcão, de um terremoto, de um tsunami, de uma febre amarela. Nada tem a ver com se pintar como aborígenes pra defender reservas indígenas ou abraçar árvores.

Evolução espiritual é um dos top em quem quer "adquirir" uma tradição. Mas esta nada tem a ver com "buscar" uma evolução espiritual como forma de fugir de filhos que têm febre ou compromissos afetivos. A evolução espiritual verdadeira é algo que nos acomete como uma disciplina aterrorizante.

Teste definitivo: você busca evolução espiritual pra aperfeiçoar seu "euzinho"? Lamento dizer que qualquer evolução espiritual (se existir) começa com você esquecer que seu euzinho existe

sábado, 25 de janeiro de 2014

Reflexão

sáb, 25/01/14
por Paulo Coelho |
 

De Antoine Saint-Exupéry, autor de “O Pequeno Príncipe”:
“No fundo, existe apenas um único problema neste mundo: como fazer com que o homem encontre de novo o sentido espiritual da vida, como provocar a nós mesmos para que retomemos o caminho que nos faz olhar nossas próprias almas.”
“Para isso, é necessário acreditar que a humanidade possa receber um banho da força luminosa que vem de cima, e que os ares sejam inundados por algo parecido com o canto gregoriano. Não podemos continuar vivendo como se o mundo se resumisse a geladeiras, políticos, orçamentos, e palavras cruzadas”.