Sabe, acho que ninguém vai entender. Ou se entender não vai aprovar. Existe
em nossa época um paradigma que diz: enquanto você me der carinho e cuidar de
mim, eu vou amar você. Então, eu troco o meu amor por um punhado de boas ações.
Isso a gente aprende desde a infância: se você for um bom menino, eu vou lhe dar
um chocolate. Parece que ninguém é amado simplesmente pelo que é, por existir no
mundo do jeito que for, mas pelo que faz em troca desse amor. E quando alguém,
por alguma razão muito íntima, corre para bem longe de você? A maioria das
pessoas aperta um botão de desliga-amor, acionado pelo medo e sentimentos de
abandono, e corre em direção aos braços mais quentinhos. E a história se repete:
enquanto você fizer coisas por mim ou for assim eu vou amar você e ficar ao seu
lado porque eu tenho de me amar em primeiro lugar. Mas que espécie de amor é
esse? Na minha opinião, é um amor que não serve nem a si mesmo e nem ao
outro.
Eu também tenho medo, dragões aterrorizantes que atacam de quando
em quando, mas eu não acredito em nada disso. Quando eu saí de uma importante
depressão, eu disse a mim mesma que o mundo no qual eu acreditava deveria
existir em algum lugar do planeta. Nem se fosse apenas dentro de mim... Mesmo se
ele não existisse em canto algum, se eu, pelo menos, pudesse construi-lo em mim,
como um templo das coisas mais bonitas em que eu acredito, o mundo seria sim
bonito e doce, o mundo seria cheio de amor, e eu nunca mais ficaria doente. E,
nesse mundo, ninguém precisa trocar amor por coisa alguma porque ele brota
sozinho entre os dedos da mão e se alimenta do respirar, do contemplar o céu, do
fechar os olhos na ventania e abrir os braços antes da chuva. Nesse mundo, as
pessoas nunca se abandonam. Elas nunca vão embora porque a gente não foi um bom
menino. Ou porque a gente ficou com os braços tão fraquinhos que não consegue
mais abraçar e estar perto. Mesmo quando o outro vai embora, a gente não vai. A
gente fica e faz um jardim, qualquer coisa para ocupar o tempo, um banco de
almofadas coloridas, e pede aos passarinhos não sujarem ali porque aquele é o
banco do nosso amor, do nosso grande amigo. Para que ele saiba que, em qualquer
tempo, em qualquer lugar, daqui a não sei quantos anos, ele pode simplesmente
voltar, sem mais explicações, para olhar o céu de mãos dadas.
No mundo de
cá, as relações se dão na superfície. Eu fico sobre uma pedra no rio e, enquanto
você estiver na outra, saudável, amoroso e alto-astral, nós nos amamos. Se você
afundar, eu não mergulho para te dar a mão, eu pulo para outra pedra e começo
outra relação superficial. Mas o que pode ser mais arrebatador nesse mundo do
que o encontro entre duas pessoas? Para mim, reside aí todo o mistério da vida,
a intenção mais genuína de um abraço. Encontrar alguém para encostar a ponta dos
dedos no fundo do rio - é o máximo de encontro que pode existir, não mais que
isso, nem mesmo no sexo. Encostar a ponta dos dedos no fundo do rio. E isso não
é nada fácil, porque existem os dragões do abandono querendo, a todo instante,
abocanhar os nossos braços e o nosso juízo. Mas se eu não atravessar isso agora,
a minha escrita será uma grande mentira, as minhas histórias serão todas
mentiras, o meu livrinho será uma grande mentira porque neles o que impera mais
que tudo é a lealdade, feito um Sancho Pança atrás do seu louco Dom Quixote. É a
certeza de existir um lugar, em algum canto do mundo, onde a gente é acolhido
por um grande amigo. É por isso que eu tenho de ir. E porque eu não quero passar
a minha existência pulando de pedra em pedra, tomando atalhos de relações
humanas. Eu vou mergulhar com o meu amigo, ainda que eu tenha de ficar em
silêncio, a cem metros de distância. Eu e o meu boneco de infância, porque no
meu mundo a gente não abandona sequer os bonecos que foram nossos amigos um
dia.
Ana Jacomo
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