domingo, 24 de novembro de 2013

Um punhado de pó

Eclesiastes deixa claro que o Deus de Israel não gosta de covardes.
Ao dizer isso, não pretendo erigir-me em especialista em Bíblia, no sentido de alguém que busque a todo o custo a literalidade histórica dos textos ou queira fazer a arqueologia de cada palavra; também não o sou no sentido de alguém que aplique cada versículo às incongruências da vida a título de operação salvífica; nem pretendo falar aqui a partir de alguma “burocracia da objetividade”.
Quem sou, então? Penso encontrar-me na mesma posição do comum dos mortais que procuram um sentido pessoal na leitura das Escrituras, e que eventualmente chegam à conclusão de não passarem daquilo que em inglês se chama suffering jokers - talvez um daqueles fools, os bobos da corte ou “loucos” que, mascarados sob o absurdo do que falam, às vezes têm mais a dizer sobre o real do que alguns pretensos sábios.
Quando me pergunto quem escreveu o Eclesiastes – para além de a resposta concreta já ter variado desde Salomão ou alguém de sua elite até qualquer membro de qualquer elite na Palestina ou fora dela por volta do século III a.C. -, assumo que foi Deus. Não o faço por razões confessionais (uma das vantagens da conversão a Atenas é a liberdade de espírito perante qualquer ortodoxia), mas antes de tudo pelo “efeito filosófico” da idéia de Deus, que me permite ver no texto uma mensagem dAquele que tudo sabe e tudo pode. Nessa mensagem descubro então uma análise precisa da condição humana que, além do mais, é capaz de despertar uma emoção profunda, uma emoção que o Antigo Testamento sempre descreve como oriunda das entranhas do homem.
Se, filosoficamente, somos incapazes de estabelecer a verdade cognitiva e epistêmica última acerca de nosso destino, a verdade visivelmente empírica encontra-se resumida no Eclesiastes. Por isso, posso assumir que sua filosofia é pura empiria, pura experiência prática humana. Assim, a minha questão é: O que quer Deus dizer-me com este texto? Como Lutero, entendo que ele nos fala da contingência e da graça, da dinâmica da graça, e é sobre esta que desejo tratar aqui.
Filosoficamente, o conceito de graça implica, além da noção de dádiva, o princípio da insuficiência ontológica da criação e seu “resumo”, o Nada. Ou somos graça ou somos vazio. Neste sentido, penso que no empirismo do Eclesiastes – na medida em que ele descreve de modo nada idealizado a condição humana – associam-se uma cosmologia ou uma ontologia da gratuidade com uma filosofia das virtudes.
É como se a contingência pedisse coragem ao homem, essa coragem que é uma das virtudes centrais e, filosoficamente, se identifica com o amor. E é por isso que, ao abordar o Eclesiastes, o leitor deve preparar-se para ter medo.
   Felipe Pondé

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