O GLOBO - 27/10
Todos
repetem a frase 'é proibido proibir', da canção em que ecoei as paredes de Paris
em 68 — que por sua vez ecoavam algum surrealista do início do século
XX
O ministro Marco Aurélio Mello me chamou de jurista. Jurista, eu?
Ele teve a argúcia de acrescentar imediatamente “baiano” ao título que me
concedeu. Percebi em tudo um tom carinhoso, mas agora só se quer ver ironias
ferinas e desavenças. Todos repetem a frase “é proibido proibir”, da canção em
que ecoei as paredes de Paris em 68 — que por sua vez ecoavam algum surrealista
do início do século XX. Sobre ela já fiz longa reflexão em texto de resposta a
Ariano Suassuna, quando este escreveu uma tardia catilinária contra o
tropicalismo. Não vou repeti-la aqui: quem quiser saber que procure em “O mundo
não é chato”. Aliás, a primeira coisa que me ocorreu quando li o ministro sobre
mim foi brincar com o fato de que ele é mais moço do que eu: as boas maneiras
pedem que se respeitem os mais velhos. Mas isso já faz mais de uma semana e eu
adoraria voltar a falar do livro de Chico Amaral sobre a música de Milton ou
começar a falar das “Cartas de marear”, de Helio Eichbauer. Infelizmente, ao
contrário do que disse Zuenir, o assunto das biografias ainda não deu o que
tinha de dar.
Na verdade, depois da piada de Zuenir a imprensa
intensificou a atitude tropa de choque. A tal ponto que pensei em pôr minha
máscara de black bloc e enfrentar os ataques ditos não letais e assim proteger
os manifestantes pacíficos que se chamam Chico, Djavan, Marisa, Erasmo, Gil,
servindo-lhes de vanguarda militar informal.
Mas sou da paz. O artigo de
Ana Maria Machado deveria ser lido por quem quer que se interesse pelo assunto
(pelo visto nas folhas e nas redes, o interesse é enorme, embora não pareça ser
pelo que é discutível na questão, e sim pela oportunidade de agredir quem ganhou
prestígio no Brasil, país que ainda precisamos tanto provar que não vale nada
nem poderá nunca valer nada). Ela fala do instinto de autodefesa desenvolvido
por quem sofreu demasiadas vezes a violência do uso ilegítimo da palavra
escrita.
Como jurista baiano, tendo a pensar que o PL 393, ao falar em
“divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica” dá
demasiada ênfase à liberdade de informação, omitindo completamente qualquer
possibilidade de proteção da intimidade. A barulheira que a imprensa faz impede
que pensemos com cuidado sobre esse problema. “Divulgação” é termo muito vago e
“imagem” nos leva logo a pensar em filmes e minisséries invasivos e rentáveis.
Muitos põem a liberdade de expressão acima do direito à privacidade. Mas notemos
que, da grande imprensa, só o “Estadão” (que não tem editora de livros) admite
que se considere o equilíbrio entre esses dois direitos constitucionais. O resto
diz apenas que o direito de informar é absoluto. Nunca quis censura prévia de
coisa nenhuma. Mesmo a biografia de Roberto Carlos não foi censurada
previamente. Um juiz, valendo-se do que o Código Civil admite, pôde pedir a
suspensão das vendas. Depois as partes fizeram um acordo.
Solidarizo-me
com meus colegas. Ao ver notas sobre supostos dramas familiares de jovens atores
(com avanços sobre motivos íntimos não confirmados por nenhum dos envolvidos),
penso no que disse Ana Maria: nas revistas e sites invadem-se intimidades e a
nossa discussão parece ater-se aos livros biográficos. Seja como for, o PL 393
agrava a situação de quem está exposto a isso, já que não temos nada na lei que
leve a imprensa a pensar duas vezes. Nem as punições nem a velocidade dos
julgamentos intimidam ninguém.
O que ambiciono, ao dar as costas às
minhas antigas ideias simplistas a respeito, é um aprofundamento da discussão.
Sinto-me à vontade na posição de desafiar o poder da imprensa. É minha cara. A
exigência feita por Ana Maria Machado de que deixemos de brigar por contraste de
posições e passemos a tomar conta do respeito às pessoas, que a indústria da
notícia escandalosa agride, calou fundo. É nesse panorama que convido as pessoas
razoáveis a pensarem comigo. Nada muito diferente do que quer a presidente da
ABL: que não ajamos como se a democracia tivesse que escolher entre a censura e
a difamação. Será que o tom histérico da imprensa e a psicopatia coletiva das
redes são a palavra final? Acho que Chico, Gil e eu não estarmos em posição
confortável reafirma nosso histórico, ao invés de desmenti-lo. Eu desconfiaria
se os três estivéssemos, ao mesmo tempo, tendo apoio unânime. Nelson Motta,
biógrafo, defende força na indenização, que não repara o sofrimento do ofendido
mas dói no bolso do ofensor. Não somos um bando de censores. Livros à mancheia e
manda o povo pensar. Mas pensar. Em Fortaleza, entre voos longos e show puxado,
não posso fazê-lo bem. Embora seja maravilha estar aqui. Mas tento e
recomendo.
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