O Estado de S.Paulo -
21/10
"Por que todo mundo está brigando?", a criança de seis anos,
fazendo cara de choro, perguntou, numa lanchonete carioca. Ninguém estava
brigando. O ruído em volta era o habitual, dos funcionários do balcão e dos
fregueses que lotavam as mesas. Mas a menina norte-americana tinha acabo de
chegar, pela primeira vez, ao Brasil. A história circula, há décadas, na minha
família binacional, como anedota sobre diferenças culturais. Hoje, Nova York
compete em barulho com cidades brasileiras - 85% das queixas sobre qualidade de
vida feitas à prefeitura nova-iorquina são sobre ruído excessivo.
Numa
tarde recente, marquei encontro com um escritor nova-iorquino no Central Park.
Levamos alguns minutos procurando um banco onde houvesse relativo silêncio para
gravar a entrevista. O barulho de aviões e helicópteros não podia ser evitado,
claro. Mal George Prochnik começou a falar, um apito ensurdecedor nos
interrompeu. É o sinal de alerta que dispara automaticamente quando veículos de
serviço dão marcha à ré, e um pequeno carro de manutenção do parque se
aproximava.
Prochnik abriu um sorriso triste, como se o ambiente em volta
argumentasse por ele. Ele é autor de um belo livro sobre o silêncio, In Pursuit
of Silence, Listening for Meaning in a World of Noise .
À medida que se
intensificou a urbanização no século 20, a queixa sobre o ruído foi
frequentemente tratada com certo sarcasmo. Exigir silêncio é dar sinal de
neurose ou de escapismo. "Por que você não vai fazer artesanato em Mauá?", seria
uma reação comum à reclamação sobre o barulho no Rio ou em São
Paulo.
Mas, como lembrou meu interlocutor, nas últimas décadas,
acumulou-se conhecimento médico sobre o preço que pagamos pela explosão de
decibéis. A poluição sonora hoje só perde para a poluição do ar como dano à
saúde e fator para encurtar a vida.
Com meu sono leve, sempre invejei
aqueles que dormem como uma pedra, a despeito do baile funk do outro lado da
rua. Pois os dorminhocos não levam vantagem. O fato é que o homem não
desenvolveu a capacidade fisiológica de se adaptar ao excesso de barulho. Um
estudo feito na Europa, em bairros perto de um movimentado aeroporto, mostrou
que quem continuava dormindo, durante pousos e decolagens, tinha alta de
pressão, pulso acelerado e liberava os hormônios ligados ao estresse, não só
durante o sono, mas várias horas depois de acordar.
Prochnik, que é
enfático sem falar alto, me explica por que nós ouvimos. A audição dos mamíferos
começou como um sistema de alerta para a presença de outros animais, ainda que
distantes. Nosso ouvido evoluiu como um sofisticado amplificador para nos
proteger. O fato de que não saímos correndo ou sacamos uma arma quando a
ambulância passa na rua quer dizer apenas que a nossa consciência se adaptou à
barulheira. Mas parte do cérebro, explica o autor, não evoluiu para processar a
mudança do ambiente, de modo que a capacidade de não se incomodar com o ruído
alto é, na prática, uma falha que prejudica a saúde.
Numa realidade de
aparelhos digitais, em que a atenção é constantemente fraturada, temos a ilusão
de que o multitasking, fazer várias coisas ao mesmo tempo, é um triunfo de
controle mental. Não é, afirmam os neurocientistas, e o mesmo vale para a
distração por som. Quando alguém diz "o barulho é tanto que não consigo me ouvir
pensar" está coberto de razão. Uma das resistências ao controle do ruído é a
acusação de elitismo. E Prochnik confirma que o silêncio hoje é privilégio para
poucos. Há toda uma indústria para proteger os afluentes do ruído, desde a
máquina de lavar mais silenciosa, passando por materiais de construção e a
localização de apartamentos.
Nunca tinha pensado na relação entre o
silêncio e a democracia, mas Prochnik me dá um exemplo que está na origem dos
Estados Unidos, no final do século 18. Reunidos na Filadélfia, os fundadores da
república, antes de redigir a Constituição, mandaram cobrir de terra a rua de
pedras em frente ao Independence Hall. Queriam abafar o trote dos cavalos e
outros ruídos de tráfego. Queriam se concentrar para imaginar a nova democracia.
A interrupção da concentração por ruídos em volta, ainda que seja a TV ligada na
sala ao lado, se reflete, sim sobre o curso da reflexão e consequentemente,
sobre a independência do pensamento.
Em seu livro, Prochnik cita um
estudo de 1938 que analisava os discursos de Adolf Hitler. A voz do führer tinha
uma média de frequência de vibrações mais alta do que a da média da população. O
próprio Hitler comentou que não teria conquistado o poder se não fossem os
alto-falantes. A voz, como lembrou Charles Darwin, pode ser uma arma de
intimidação.
Mas, da conversa com Prochnik, as histórias que mais me
assustaram foram sobre o desenvolvimento de crianças. Ele citou um estudo feito
numa escola pública americana. A alfabetização de crianças que frequentavam as
salas de aula com janela para o tráfego intenso ficava, em média, um ano atrás
da alfabetização de crianças que estudavam em salas com janelas para o fundo
silencioso do prédio.
Nem só o barulho à distância afeta o
desenvolvimento infantil. O problema está na simples eliminação do silêncio.
Aqueles aparelhos de ruído branco para abafar o ruído da casa no quarto do bebê?
Má ideia, diz ele, recorrendo à pesquisa de Michael Merzenich, um dos pioneiros
do estudo da plasticidade do cérebro. Pense numa casa com a TV e um ventilador
barulhento sempre ligados. O ruído de fundo permanente tem, sobre a aquisição de
linguagem do bebê, efeito semelhante a ser criado por um só adulto que nasceu
com fenda palatina. O cientista explica que esta criança aprende a falar, claro,
mas a sua língua seria um português inferior porque, no começo do
desenvolvimento, ela não pôde distinguir entre o ruído de fundo e a fonética.
Então, esta criança já parte para a escola com uma capacidade mais lenta de
processar linguagem.
Quando explorou a costa brasileira, Charles Darwin
descreveu o contraste do ruído ensurdecedor dos insetos, ouvido nos navios longe
da costa, e o silêncio profundo no interior da floresta.
Ao acompanhar
certos debates em curso, seja o de políticos no Congresso ou o que divide
músicos e biógrafos, lembro da tarde com George Prochnik no Central Park. Os
xingamentos, os argumentos simplistas confirmam que o volume do barulho
contribui para abafar a democracia.
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