O futebol de calçada era com narração, e o próprio jogador fornecia a narração.
Jogava e descrevia sua jogada ao mesmo tempo, e nunca deixava de se
autoentusiasmar. “Sensacional, senhores ouvintes!” (Naquele tempo os locutores
tratavam o público de “senhores ouvintes”).
“Sensacional! Mata no peito,
põe no chão, faz que vai mas não vai, passa por um, por dois... Fáu! Foi fáu do
béque! O juiz não deu! O juiz está comprado, senhores ouvintes!”
Fáu era
“foul” e béque era “back”, na língua daquela terra estranha, o passado. E o
juiz, claro, era imaginário. Tudo era imaginário no futebol de calçada, a
começar pela nossa genialidade. A bola era de borracha, quando não era qualquer
coisa remotamente redonda. O bola número cinco oficial de couro ganha no Natal
não aparecia na calçada, tá doido? Estragar uma bola de futebol novinha jogando
futebol?
Mas éramos gênios na nossa própria narração.
“Lá vai ele
de novo. Cabeça erguida! Passa a bola e corre para receber de volta... Que
lance! O passe não vem! Não lhe devolvem a bola! Assim não dá, senhores ouvintes
... Só ele joga nesse time!”
A narração dava um toque épico ao futebol.
Lembro que na primeira vez em que fui a um campo, acostumado a só ouvir futebol
pelo rádio, senti falta de alguma coisa que não sabia o que era. Tudo era
maravilhoso, o público, o cheiro de grama, os ídolos que eu conhecia de
fotografias desbotadas no jornal ali, em cores vivas... Mas faltava alguma
coisa. Faltava uma voz me dizendo que o que eu estava vendo era mais do que
estava vendo. Faltava a narrativa heróica. Faltava o Homero.
Na calçada
éramos os nossos próprios heróis e os nossos próprios Homeros.
“Atenção.
Ele olha para o gol. Vai chutar. Lá vai a bomba. O goleiro treme. Ele chuta! A
bola toma efeito. Entra pela janela. E lá vem a mãe, senhores ouvintes! A mãe
invade o campo. Ele tenta se esquivar. Dá um drible espetacular na mãe. Dois. A
mãe pega ele pela orelha. Pela orelha! E o juiz não vê isso!”
Mesmo se
nem tudo merecesse o toque épico.
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