O Estado de S.Paulo -
23/09
"A maioria dos homens não precisa enfrentar o fato de que, no
momento certo, no lugar certo, eles são capazes de fazer qualquer
coisa."
Esta é a epígrafe do livro de memórias de Samantha Geimer, The
Girl: Emerging from the Shadow of Roman Polanski (A Menina: Saindo da Sombra de
Roman Polanski). É uma citação de um diálogo entre o personagem de John Houston
e o de Jack Nicholson no clássico Chinatown, de Roman Polanski. Polanski é
também o protagonista, com a autora, de outro drama. Ele foi indiciado na
Califórnia, em 1977, por drogar e estuprar a autora quando ela tinha 13
anos.
Hoje, Polanski tem 80 anos e continua celebrado como um grande
artista. A senhora Geimer tem 50 anos, um marido, três filhos e decidiu tomar
posse da parte que lhe cabe do latifúndio narrativo criado em torno daquela
tarde. Mesmo depois da breve prisão do cineasta na Suíça, graças ao pedido de
extradição feito pelos Estados Unidos, o nome Samantha Geimer continuou
desconhecido. Mas ela e a família não tiveram a opção da vida no
anonimato.
Geimer relembra o terror que sentiu "depois" e que preferia
ser forçada a fazer sexo de novo a reviver tudo o que passou diante da polícia,
do sistema penal e da mídia.
A menina cuja mãe a estimulava a posar como
modelo foi apanhada de carro por Polanski para uma sessão de fotos para a
revista Vogue, na casa de Jack Nicholson. Depois de encharcar a garota de
champanhe e fazer fotos topless, Polanski telefonou para a mãe dela e retirou o
último obstáculo prometendo que ia levar Samantha para casa. Partiu um
comprimido de Quaalude em três pedaços e mostrou a ela numa tentativa de
detectar sua experiência. Geimer sabia o que era, mas disse que não queria
tomar. Ele insistiu. Ela obedeceu, tomou o Qaalude com champanhe, entrou na
jacuzzi. Assustada com a situação, mentiu, dizendo que tinha asma e precisava ir
para casa. Ele disse "não" e a empurrou para a cama, onde Samantha não tinha
mais condições nem de dizer "sim". Ela se lembra que não queria ser tocada por
um homem de meia idade, mas se conformou com o ato inevitável que incluiu
penetração anal.
Para Geimer, em 1977, estupro era algo que acontecia a
uma menina raptada por um estranho. "Não havia sedução ou gentileza, nem mesmo a
coerção gentil, na minha definição," escreve.
Seu padrasto maconheiro e
sua mãe deslumbrada chamaram a polícia porque as fotos mostradas pelo diretor,
quando deixou sua filha em casa, eram de péssima qualidade? Ou por que a irmã da
menina, ao ouvir a história avisou os pais alarmada? A reação da mãe foi chamar
seu contador. O contador mandou chamar a polícia. E a bola de neve rolou
montanha abaixo, aumentada pelo apetite insaciável de um juiz egomaníaco e da
imprensa de celebridade.
Quantos homens brasileiros de classe média alta
hoje, em torno de 50 anos, começaram sua vida sexual na área de serviço da casa
de seus pais, com menores de idade? Ouvi histórias destas conquistas como
bravata, durante minha adolescência. Naquele tempo, nem me passou pela cabeça
que o sexo, apesar de consensual, era também um arranjo único de abuso de
poder.
O que se aconteceu entre a garota de 13 anos e o artista
atormentado que se atribuía direitos ainda comuns na sociedade brasileira não é
simples. Pertence a uma era em que a sexualização de meninas era um aspecto
triste da contracultura americana, tolerada sem a hipocrisia de hoje - em que é
perseguida de maneira bombástica pela justiça, enquanto continua estimulada por
corporações e pela mídia.
Samantha Geiner diz que sente empatia, não
simpatia, pelo homem que mudou sua vida. Acha que ambos são vítimas de um mesmo
sistema corrupto. Aceita o pedido de desculpas - sem admissão de culpa- que
recebeu numa breve carta de Polanski.
Na carta, escrita depois que
assistiu ao documentário Polanski: Wanted and Desired, de 2009, o diretor se diz
"impressionado com a integridade" de Geimer. Se, ao menos, esta qualidade fosse
importante para Polanski naquela tarde, há 36 anos.
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