domingo, 29 de setembro de 2013

O mal estar na contemporaneidade; performace e tempo Olegária Matos

A modernidade é produzida pelo capitalismo contemporâneo e dominada pelo princípio do desempenho, sua temporalidade não é a da experiência, do conhecimento, da felicidade; ela é institucionalmente organizada e este é “o atributo mais eminente da dominação”1 - o que corresponde a um encolhimento do “espaço de experiências” na vida social e de liberdade; liberdade de acesso ao passado e ao futuro como construção de uma subjetividade democrática.
A temporalidade aderida à aceleração do presente - o presenteísmo - apodera-se de todos os espaços democráticos, a começar pela educação, que deixa de ser “educação para a liberdade”, tornando-se “educação para a adaptação”, substituindo-se a noção de “cultura geral” pela de “cultura comum”, cuja finalidade essencial é “preparar os jovens para entrar no mundo tal como ele é”2. Essa adesão ao presente plano, caso permita algum sonho, este é paradoxal, sonha tão somente com o status quo, deseja que nada de novo venha a abrir o tempo histórico e o futuro. O tempo na contemporaneidade é fatalizado pela ordem das urgências que significa uma oscilação na razão instrumental, o culto dos meios e esquecimento dos fins. Ele é o reino das revoluções tecnológicas do progresso.
A modernidade ocidental nasce sob o signo da mudança incessante. Seu protótipo foi o Iluminismo filosófico e seu desejo de claridade. Com a metáfora da luz o Iluminismo3, no século XVIII europeu, inaugura a crença no progresso científico, político, social, moral e econômico contra as trevas do obscurantismo. A noção de progresso traz consigo a idéia de superioridade do presente em relação ao passado, o que resulta em associar-se tradição a atraso, modernidade à revolução científica e tecnológica. O moderno é, também, ontologicamente bom. A utilização anti-humana da ciência e da técnica, porém, e, sobretudo a partir da primeira Guerra Mundial4 - questiona o conhecimento e a prática científica já que ela serve aos senhores do mundo, como observam Adorno e Horkheimer,“na fábrica ou no campo de batalha”5. Para os filósofos, só há progresso se às transformações materiais corresponder bem-estar espiritual do homem.
A modernidade capitalista, do industrialismo à micro-eletrônica, supõe a plena luz. Desta forma, com a substituição dos lampiões a gás pela iluminação elétrica em fins do século XIX, “a Via-Láctea foi secularizada”6. Estas palavras não se referem apenas ao desencantamento psíquico e da cultura, mas também ao significado socioeconômico desta realização: a atividade sem trégua do modo de produção capitalista tornou-a desmedida, não tolerando o tempo noturno - de passividade, repouso e contemplação. A economia, em sua forma atual de acumulação (cuja infra-estrutura são as nanotecnologias e a microeletrônica), exige a extensão e a intensificação da atividade até os últimos limites físicos e biológicos do indivíduo. Razão pela qual, com a eletrificação, o dia iluminado terá vinte e quatro horas. A organização institucional do tempo é a figura mais eminente da alienação e da dominação do homem pelo mercado mundializado, pois cada um perde o sentido e o mestrado do tempo e de sua vida. Consciente da heteronomia do tempo de trabalho, o Maio de 1968 francês eternizou nos muros da cidade a inscrição: “não mude de emprego, mude o emprego de sua vida”.
A ética protestante foi abandonada em nome do espírito capitalista segundo a fórmula de Benjamin Franklin, para quem “tempo é dinheiro”. Se tempo é dinheiro, ele não é busca de sentido e subjetividade, mas quantidade e heteronomia imposta pela temporalidade do capitalismo tardio - o que só aprofunda a crise do sentido da atividade: a desagregação do sentido da vida em comum arrisca subsumir o homem nessa alienação particular que Hannah Arendt nomeava “acosmismo”, o sentir-se estranho no mundo, o sentimento do não pertencimento, o de ser supérfluo. Deve-se, aqui, diferenciar o capitalismo de produção do capitalismo de consumo. No primeiro, o “homem só se sentia em casa quando fora do trabalho e quando no trabalho, estava fora de si”7. Na sociedade do consumo, quando o homem está fora do trabalho, tampouco se encontra junto a si. A “escalada da insignificância” resulta em uma lógica do desengajamento em relação a um mundo compartilhado e com respeito também a si mesmo, com a dificuldade de criação de laços duradouros, com a obsolescência de valores como respeito, solidariedade, responsabilidade e fidelidade. O eu procura eliminar todos os laços e sentimentos, reduzidos, agora, a valor de troca, e o mercado conduz ao consumo permanente, induzindo à pressa, constrangendo à rapidez e à aceleração, acentuando a superficialidade nos vínculos (na medida em que os sentimentos exigem a duração para desenvolverem-se), produzindo a “pobreza interior”.
No século XIX, o aumento tanto absoluto, quanto relativo do tempo de trabalho era ainda experimentado como uma espécie de tortura: “durante um longo período, as pessoas tentaram uma resistência desesperada contra o trabalho noturno ligado à industrialização. Trabalhar antes do alvorecer ou depois do pôr-do-sol era considerado imoral”8. À maneira dos mercados financeiros, o homem não deve dormir nunca e, assim, se institui o stress como modo de vida, seja para aqueles ligados a um trabalho, seja para a massa crescente de trabalhadores precários e desempregados. Predomina aqui uma percepção do tempo na qual não mais se tem tempo - sentimento este paradoxalmente presente, também, entre os desempregados9. O capitalismo ultra-liberal confisca o “espaço da experiência” e o “horizonte de expectativas”, resumindo-se a um “presente perpétuo”10.
A aceleração do tempo do mercado mundial entra em conflito com a temporalidade política das democracias que, desprovidas da experiência do passado e do futuro, não mais possuem a possibilidade de construção de uma memória representável, isto é, contestável - o que põe em questão o próprio exercício democrático: a contemporaneidade transforma a capacidade humana de duvidar em simples falta de convicção. Mas não engajar-se significa “não se empenhar na criação de valores espirituais”11. Sem laços estáveis, produz-se um déficit simbólico no indivíduo e na sociedade, uma vez que valores dependem de um espaço comum de experiências compartilhadas12.
Que se pense na flexibilização dos direitos socais e trabalhistas, bem como nas privatizações forçadas das instituições públicas. Por princípio, a intervenção estatal e os serviços públicos são regidos por uma temporalidade diversa daquela dos negócios privados e do mercado. Serviços de saúde, aposentadorias, rede de transporte, educação, até há algum tempo operavam na duração em longo prazo, senão permanente, para responder a necessidades sociais inscritas, por sua natureza, no tempo de longa duração. Se hoje esses serviços foram tomados pela lógica dominante do lucro em curto prazo, essas reformas significam que o Estado transfere ao mercado sua capacidade e responsabilidade de assegurar o futuro de seus cidadãos: “de agora em diante é o mercado, com suas altas e baixas, que ‘garante' o recebimento futuro (a aposentadoria). O Estado cede assim sua capacidade de garantir o futuro (...) ao mercado”13.
Se espacialização do tempo corresponde a sua mensuração abstrata, à quantidade de trabalho socialmente necessário à produção para o mercado, ela é patológica, pois determina o decréscimo das faculdades criadoras e fantasmáticas dos indivíduos, submetidos às leis do mercado, isto é, à insegurança e ao medo. Quando se trata da situação de trabalho, o trabalhador está permanentemente sob pressão das empresas nas quais ele se sente “a mais”, “custando muito caro”. Na perda da identidade profissional e da auto-estima encontra-se uma situação traumática, uma vez que não apenas perde-se um posto de trabalho para, talvez, encontrar um outro como - e antes de tudo - toda uma vida pode ser desfeita: “advêm sentimentos de desvalorização de si, ruptura de redes de solidariedade, perda de elementos constitutivos da identidade profissional, culpabilidade, vergonha, introversão, dilaceramento da comunidade de trabalho que sustentava a existência (...). A perda de confiança no futuro - (...) que se anuncia incompreensível - produz uma profunda ansiedade a que respondem a angústia e o medo do abandono. Angústias arcaicas (...) que podem ter efeitos devastadores”14.
Modernização significa, assim, a passagem de um mundo com regras conhecidas a um mundo instável e incerto. A temporalidade contemporânea assim constituída produz - não o tédio, mas monotonia. Se o tédio ( l´ennui), como magistralmente o tematizou Baudelaire em poesia e prosa, é a temporalidade do passado que se repete continuamente no presente - como a moda - isso não significava perda do futuro. Ao contrário, o spleenático vislumbra os paraísos artificiais. Por isso Baudelaire escreve Spleen e Ideal, o spleen como ideal para se contrapor à lógica da produção de mercadorias que é a da multiplicação e da repetição, em princípio ilimitada, do mesmo objeto. O dândi, por seu hábito de “mudar de rosto” e a cada dia surpreender com vestimentas excêntricas, é um ser dotado de singularidade em meio à multidão anônima. O olhar do dândi é capaz de reconhecer no novo o antigo e no antigo o novo, conferindo ao repetitivo a raridade do objeto único, captando na repetição o surpreendente e o extraordinário. Como a maquiagem. O pó-de-arroz é como a mica do mármore que confere à mulher moderna a aura de uma estátua grega.
Já a monotonia é um tempo estagnado, como se a eternidade do céu se plasmasse na Terra. É uma temporalidade que se exprime na ansiedade de “matar o tempo”. Tempo patológico, seu vazio de significado tem o stress como ideal porque na monotonia o tempo não passa, pois está alienado na perda do sentido das ações. Ele promete a felicidade pelo consumo de bens materiais, mas permanentemente frustra essa esperança, pois não é possível, em regime de acúmulo, reposição e acréscimo do capital, democratizar o excedente e o supérfluo. Tempo que se comprime no desejo de consumo ilimitado, por um lado, determina a exaustão, de outro. Diferem a exaustão e o cansaço. Se neste ainda é possível pensar e imaginar, na exaustão não há possibilidade de exercício do pensamento, apenas hiperatividade vazia e também destrutiva. Abulia e sofreguidão constituem dois aspectos do tempo presente, embora aparentemente diversos: “as duas atitudes possuem um traço comum: a reificação de si”15, apreensão de si como objeto sem valor e sem sentido. Não podendo escolher nem deliberar acerca do trabalho ou dos usos que poderia fazer do tempo, os homens não são mais agentes, mas “agidos”: “a atividade tornou-se uma variante da passividade e mesmo onde as pessoas se cansam até seu limite (...), ela tomou a forma de uma atividade - mas para nada -isto é, uma inatividade”16.
Ou melhor: vive-se, hoje, uma inflação das possibilidades de significados e, portanto, a impossibilidade em reconhecê-los, seja em nosso mundo interno quanto no externo. Nas palavras de Leder: “o imaginário da sociedade contemporânea encontra-se condicionado (...) por uma extrema saturação. O imaginário caracteriza-se por uma abundância potencial que se apresenta ao alcance da mão, mas que se encontra, no entanto, inacessível (...). É precisamente a tensão entre a intuição da presença da satisfação ao alcance da mão e a realidade de seu afastamento e inacessibilidade, o que determina a situação da consciência contemporânea (...). Um exemplo pode ser encontrado na sociedade polonesa, na dicotomia entre sociedade da penúria material e uma sociedade de consumo que ocorreu há quinze anos e transformou totalmente o imaginário social. A mudança da valorização e principalmente da saturação do campo simbólico foi muito mais acelerada que a melhora da qualidade de vida. Paradoxalmente, nos anos sessenta, depois da desestalinização, quando praticamente a totalidade dos poloneses vivia em profunda penúria, mas ao mesmo tempo seu imaginário estava relativamente pouco saturado e, além do mais, estruturado pelo vetor do progresso, a vivência da falta era fraca e cada aquisição material tornava-se um símbolo valorizado positivamente. Nos anos noventa, a transformação econômica melhorou muito a situação material da maioria da população, mas ao mesmo tempo, forçou a integração do campo simbólico dos poloneses no espaço da civilização global. O sentimento de falta e de frustração tornou-se generalizado em todas as camadas da sociedade”17.
Encontra-se aqui o mal-estar contemporâneo que se expressa em um sentimento de monotonia ou “tédio crônico”, monotonia que conduz a um desinvestimento em valores. Tudo isso se passa em uma temporalidade monótona, específica de uma sociedade organizada, também, de maneira específica - e que é uma desorganização da consciência social pelo sentimento de desvalorização de si e de humilhação: “a privação específica de si, a questão do sentimento mais do que o da consciência da humilhação, do não reconhecimento de si pelo outro, encontra-se no cerne da humilhação nas sociedades contemporâneas”18. Tanto mais humilhante é uma situação quanto mais cada um é chamado a consumir e quanto menos poderá fazê-lo. Desprezo dos dominantes, por um lado, humilhação dos excluídos do luxo e da abundância, de outro, resultam em apatia e hiperatividade - ambos os sintomas de excessos - de frustração, de possibilidade de consumir efetivamente o que o que quer que seja. Esse tempo patológico é preenchido por esportes radicais, obesidade mórbida, anorexia, bulimia, terrorismos e guerras contemporâneos. Esta agitação permanente é a expressão do empobrecimento psíquico e da perda de qualquer sentido da vida - de onde a “desvalorização de todos os valores”. A contemporaneidade é a do “crepúsculo do dever”, pois requer tão somente uma “ética indolor” à qual corresponde ausência de normatividade na vida pública, a descrença nas instituições, na aplicabilidade e na eficácia das leis.
Como observava Marx, com a produção que visa tão somente o mercado, dá-se a queda do tempo qualitativo em tempo quantificado, tempo que é reificação da duração, pois esta se encontra plasmada no presente - o que resulta na perda da qualidade dialética do vivido, vivido que se tecia de lembrança e esquecimento. E onde não há tempo, tampouco pode haver recordação nem redenção. Como escreveu Benjamin: “as rugas e marcas em nosso rosto são as assinaturas das grandes paixões que nos estavam destinadas. Mas nós, os senhores, não estávamos em casa”19

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