FOLHA DE SP - 22/09
A
arte contemporânea acabou com a crítica; isso é expressão da crise por que
passam as artes plásticas
Embora tenha frequentemente criticado o que
se chama de arte contemporânea, devo deixar claro que não pretendo negá-la como
fato cultural. Seria, sem dúvida, infundado vê-la como fruto da
irresponsabilidade de alguns pseudoartistas, que visam apenas chocar o
público.
Há isso também, é claro. Mas não justificaria reduzir a tais
exemplos um fenômeno que já se estende por muitas décadas e encontra seguidores
em quase todos os países.
Por isso, se com frequência escrevo sobre esse
fenômeno cultural, faço-o porque estou sempre refletindo sobre ele. Devo admitir
que ninguém me convenceria de que pôr urubus numa gaiola é fazer arte, não
obstante, me pergunto por que alguém se dá ao trabalho de pensar e realizar
semelhante coisa e, mais ainda, por que há instituições que a acolhem e
consequentemente a avalizam.
O fato de negar o caráter estético de tais
expressões obriga-me, por isso mesmo, a tentar explicar o fenômeno, a meu ver
tão contrário a tudo o que, até bem pouco, era considerado obra de arte. Não
resta dúvida de que alguma razão há para que esse tipo de manifestação antiarte
(como a designava Marcel Duchamp, seu criador) se mantenha durante tantos
anos.
Não vou aqui repetir as explicações que tenho dado a tais
manifestações, as quais, em última análise, negam essencialmente o que se
entende por arte. Devo admitir, porém, que a sobrevivência de tal tendência,
durante tanto tempo, indica que alguma razão existe para que isso aconteça, e
deve ser buscada, creio eu, em certas características da sociedade midiática de
hoje. O fato de instituições de grande prestígio, como museus de arte e mostras
internacionais de arte, acolherem tais manifestações é mais uma razão para que
discutamos o assunto.
Uma observação que me ocorre com frequência, quando
reflito sobre isso, é o fato de que obra de arte, ao longo de 20 mil anos,
sempre foi produto do fazer humano, o resultado de uma aventura em que o acaso
se torna necessidade graças à criatividade do artista e seu domínio sobre a
linguagem da arte.
Das paredes das cavernas, no Paleolítico, aos afrescos
dos conventos e igrejas medievais, às primeiras pinturas a óleo na Renascença e,
atravessando cinco séculos, até a implosão cubista, no começo do século 20,
todas as obras realizadas pelos artistas o foram graças à elaboração, invenção e
reinvenção de uma linguagem que ganhou o apelido de pintura.
Isso não
significa que toda beleza é produto do trabalho humano. Eu, por exemplo, tenho
na minha estante uma pedra --um seixo rolado-- que achei numa praia de Lima, no
Peru, em 1973, que é linda, mas não foi feita por nenhum artista. É linda, mas
não é obra de arte, já que obra de arte é produto do trabalho
humano.
Pense então: se esse seixo rolado, belo como é, não pode ser
considerado obra de arte, imagine um casal de urubus postos numa gaiola, que de
belo não tem nada nem mantém qualquer relação com o que, ao longo de milênios, é
tido como arte. Não se trata, portanto, de que a coisa tenha ou não tenha
qualidades estéticas --pois o seixo as tem-- e, sim, que arte é um produto do
trabalho e da criatividade humana. Se é boa arte ou não, cabe à crítica
avaliar.
E toca-se aqui em outro problema surgido com essa nova atitude
em face da arte. É que, assim como o que não é fruto do trabalho humano não é
arte, também não é possível exercer-se a crítica de arte acerca de uma coisa que
ninguém fez.
O que pode o crítico dizer a respeito dos urubus mandados à
Bienal de São Paulo? A respeito de um quadro, poderia ele dizer que está bem
mal-executado, que a composição é pobre ou as cores inexpressivas, mas a
respeito dos urubus, que diria ele? Que não seriam suficientemente negros ou que
melhor seria três em vez de dois? Não o diria, pois nada disso teria cabimento.
Não diria isso nem diria nada, porque não é possível exercer a crítica de arte
sobre o que ninguém fez.
Desse modo --e inevitavelmente--, a chamada arte
contemporânea acabou também com a crítica de arte. Isso tudo é, sem dúvida, a
expressão da crise grave por que passam hoje as artes plásticas.
Costumo
dizer que a arte existe porque a vida não basta. Negar a arte é como dizer que a
vida se basta, não precisa de arte. Uma pobreza
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